19.12.07

Barcos

Um dia todo o desejo de um barco é fartar-se de água.
Os Homens não nos cansamos da terra que nos sustenta. Para a grande maioria de nós, o ser humano caminharia passos sem fim por estradas e campos e atalhos; anoiteceria sem pavor à escuridão se soubesse ser inexorável a manhã seguinte; viveria em felicidade sabendo-se livre da frialdade escura do solo a lhe comprimir e consumir o corpo inerte.
E todos os dias a terra farta-se de Homens.
Os barcos escoam passos no líquido corpo em que flutuam; envelhecem, com fugazes rugas, as faces perenemente jovens de todas as águas; desejam a espuma de todos os mares, as margens de todos os rios; entregam sem receio suas carnes ao castigo do Sol, aos arranhões do Vento – sempre há o constante e molhado embalo a lhes trazer alívio.
Um dia todo o desejo de um barco é fartar-se de água.
Então escolhe o Vento da pior tempestade ou a maior vaga, nascida de fúria e susto, ou uma pedra, esquecida aos humanos olhos: e se entrega.
Afunda-se: mastros e proa e popa e bordos e leme e quilha e velas em um longo e terno abraço, repousando cansaço no leito lodoso de um rio ou no escuro e silencioso azul de um mar.
Guardando em si todos os caminhos que navegou, o barco agora anoitece alimentado pela certeza da manhã que lhe trará novas noites.
E não deseja epitáfio a marcar seu local de repouso – quer apenas consumir-se liquidamente em paz.

25.10.07

Neste momento

Neste momento, a água brota, nascendo, em fontes, os rios. Nasce calada, miúda, um fio sem cor e sem forma escoando-se terra afora. Logo começa a falar. De início é um sussurro molhado sobre secas folhas, sobre uma vegetação que se deita em seu líquido corpo, toda entregue. Aos poucos a mata se joga sobre a água em desvios, troncos, pedras cada vez maiores – e o sussurro cresce, transformando-se em um ronco ora abafado, ora atroante a escapar da garganta dos rios.
Neste momento, os rios se vestem de correntezas, de corredeiras, de cascatas, cachoeiras, exibindo seus cristalinos corpos, vergastados pelos obstáculos que encontram ao longo de seus leitos. Em seus trajetos se machucam e sangram em água suas peles imaculadas de qualquer marca. E dormem e acordam querendo ser mar.
Neste momento, o mar acaricia os estuários com línguas de espuma e vagas, embalando os rios e engolindo-os em sua garganta oceânica. Adentra-se pela terra, tomando para si toda a água gerada para ser somente sua. O mar espreguiça-se em vastidão e abismo, placidamente encarando a fixa abóbada azul a escorrer bem acima de si. E no céu que não lhe pertence, o mar vê brotar nuvens.
Neste momento, as nuvens crescem: cansada da Terra, a água se evola e se aninha no céu. Rolando-se pelo firmamento nos aerados dedos do vento, as nuvens se unem e se unem e se unem, engravidando-se de água. Pesadas, suas disformes barrigas negras trovejam tempestade.
Neste momento, chove.

11.9.07

Tombar de árvores

Não existe trilha para conduzir o homem ao local desejado. Com um facão, ele abre caminho com gritos secos da lâmina sobre folhas, cipós, plantas baixas, galhos. Toda a mata respira em uma mesma cadência, pulsando um ar abafado e úmido a criar o calor que empapa a camisa do homem. Ele pisa em folhas secas, espatifando o solo sob suas botas com inumeráveis estalidos agudos. Uma brisa esparge os raios de sol por toda a mata ao jogar folhas e galhos lentamente de lado a outro, criando um jogo de luz e sombra. Depois de um trajeto longo no tempo e curto no espaço, o homem encontra o lugar que procurava.
Enormes árvores esticam caules para longe do chão, criando paredes de quinze, vinte metros de altura feitas de tronco e casca. O silêncio cede o corpo ao manto sonoro tecido pelos pássaros, pelas folhagens. Uma penumbra quente flui por entre as árvores, como se a mata acelerasse a respiração.
O homem tira o chapéu, enxuga o suor com um lenço encharcado, toma um gole de água, coloca a moto-serra sobre o solo.
Logo, o barulho dos dentes famélicos esvoaça alguns pássaros, serpenteia por entre o verde, treme a terra com um sismo cadenciado e rouco.
O homem aproxima a lâmina de um tronco, encostando-a na rugosa carne da casca.
Em lascas apressadas a escapar de seu corpo, em verde folhagem a tentar prender-se no ar, em altiva copa a buscar o céu, em líquida seiva a escorrer de seu seio, a árvore grita dor.
Ao tombar, ela esparrama agonia por entre os inúmeros troncos que a cercam com suas copas compactas que não mais o serão; com seus galhos estirados em abraços que jamais se darão.
Ainda por um tempo, as raízes seguirão na tarefa de prender-se à terra, por desconhecerem a inutilidade de se agarrar ao solo quando se perdeu o céu.

7.8.07

Sedução

Tendo se deitado há pouco mais de dez minutos, olhar fixo no teto, um abajur aceso ao lado da cama, um livro aberto sobre o peito, o homem pensa em seu dia enquanto espera pela mulher.
Desperta e lúcida, a Noite vagueia escuridão pelo quarto e alimenta sonolência no homem. Aliando-se à noite, o cansaço lhe pesa as pálpebras; ele pisca uma, duas vezes, cerra olhos para a Vigília, começa a cochilar.
A mulher entra no aposento, chama pelo marido, não obtém resposta. Fecha vagarosamente a porta, olha no leito e vê o homem dormindo. Movendo-se com cuidado para não despertá-lo, ela abre gaveta de uma cômoda e pega uma camisola de seda.
Mesmo esforçando-se para preservar o sono do homem, o barulho de abrir e fechar a gaveta o desperta. Mas ele mal abre olhos, vê apenas o vulto da mulher, e o Sono fica indeciso entre estreitar o abraço ou afastar-se do corpo do homem.
Amolecido, ele vislumbra a mulher envolta em névoa feita de torpor e sonho; percebe-a tirar a calça, a blusa, passear pelo quarto uma diáfana nudez coberta apenas pela lingerie. Quando a mulher tira o sutiã, puxa as alças da calcinha, ajeitando-as na cintura, os sentidos do homem tentam arrebentar a fina camada de languidez que se prepara para jogá-lo no noturno abismo do sono. Alquebrado, o corpo lhe exige imobilidade; as pálpebras lutam para que os olhos se esqueçam de enxergar.
Ela veste a camisola, ele tem a opaca visão do tecido macio a lhe escorrer na pele clara, e solta um suspiro longo e morno.
A Noite desnuda ainda mais seu seio negro; o Sono arqueia seus mil braços de sono.
E a mulher passa a mão pelo rosto do homem, beija-lhe a testa e apaga a luz do abajur.

11.7.07

Materno

Quantos minutos deixam de existir com o avanço do ponteiro do relógio de parede? A mulher não conta o tempo pelo relógio, mas pela quantidade de mães e crianças que entram e saem da sala de espera; conta-o pelo choro lento e molhado dos bebês; pelo letárgico sono febril de algumas crianças, como esse que brinca de tomar seu filho pelas mãos e imergi-lo em lamentosa apatia.
O menino encosta a cabeça no braço da mãe; o ardente e invisível fogo das febres pesa-lhe as pálpebras, e ele pisca olhos. Olha ao redor sem interesse, vê outras crianças e quer distância delas, quer mesmo é voltar para casa. Enfia a mãozinha pelo braço da mãe, que o olha por sobre o ombro: “Que foi, Felipe...tá doendo?”. Ele nada responde, mal levanta o olhar, afunda a cabeça no colo materno, num esforço entre manter-se sentado e se deitar.
A mulher alisa os cabelos do filho, coloca-lhe as costas da mão direita na testa, medindo com precisão materna a temperatura. Na mão esquerda, o envelope lacrado do laboratório.
A mãe corre olhos pelo nome do filho, pelo nome do médico impressos no envelope. Olha o papel muito branco, sem dobras, sem manchas, apenas um selo lacrando o destino de Felipe; apenas um selo e o tempo escoado em mães e crianças a entrar e sair do consultório. Há dias a quente lava da ansiedade queima-lhe o estômago, tranca-lhe a garganta, impedindo-a de se alimentar, apagando-lhe o sono, consumindo-lhe a voz.
O menino se mexe, tenta se levantar, a mãe puxa-o pelos braços, ajeita-lhe o corpo amolecido em seu regaço, beija-lhe a testa.
Quando a secretária a chamar, ela carregará o filho no colo, entregará o envelope ao médico, atingirá o cume da montanha que vem evitando escalar, terá de lhe encarar a fumegante cratera.
E rezará para que as palavras ouvidas sejam rio sereno e fresco a lhe aplacar o vulcão da angústia.

5.6.07

Faces do rosto esquecido

A pilha de tijolos já estava encostada na casa quando o homem se decidiu por sentar-se. Um, dois, três...cinco retângulos de barro, largados uns sobre os outros, esqueciam-se da obrigação de serem parede naquela manhã de domingo. Juntos, compartilhavam inútil individualidade até que o homem resolveu utilizá-los como um mal arrumado banco.
Sentou-se, abriu as pernas para melhorar o equilíbrio, pôs as mãos sobre os joelhos e passou a olhar a rua.
O sol mastigava as folhas de uma árvore plantada na calçada, mas apenas uns poucos raios venciam a resistência da folhagem e atingiam o rosto do homem. No início, incomodado, ele piscava olhos cada vez que a claridade lhe inundava as pupilas. Logo se acostumou, e o jogo de sombra e luz não mais o importunava.
O calor ainda era pouco, por isso deixou as mangas da camisa abotoadas, escondendo os braços secos; à mostra apenas os dedos ressequidos pelos anos de trabalho com cimento, areia, cal.
O homem olhava a rua, mas enxergava longínquo quintal; permanecia calado, mas repetia nomes gravados na eclipsada memória infantil; não ouvia o barulho à sua volta, deixava-se relembrar vozes fracas, que perdiam intensidade para apenas uma se sobressair, firmar-se, gritar-lhe na alma uma frase...uma frase...: ”Vá com Deus, meu filho...”.
Ficou em pé com um pulo, passou a mão na barba de três dias e usou todas as forças para que a memória trouxesse, junto com a voz reconhecida, o rosto da mulher de cuja boca a frase saíra.
Não conseguiu recordar. O homem dirigiu-se para dentro de casa, esqueceu-se do distante quintal, dos nomes que pularam em sua mente, agarrou-se à voz que ressoava em sua alma: primeiro dos tijolos moldados à lembrança que, empilhados, formarão o mosaico de sua saudade.

17.5.07

Desassossego

Ouço o martelar insistente na construção ao lado mandar embora o silêncio que me acompanhava. Ele reluta em partir, enrola-se no tapete, permeia piso e paredes, mas o martelo não desiste e invade o espaço com seu discurso monocórdio.
Enquanto estávamos a sós, o silêncio me ajudou a ouvir cantos de pássaros e bater de asas; trouxe-me o rumor de ramos e galhos sendo vergados e o assobio das folhas nadando vôo caótico; fez-me escutar tempestades navegarem pelo céu e lavarem o mundo.
Depois ele se aquietou, soprando-me aos ouvidos sombras nascidas da ausente luz da angústia. Escutei todos os lamentos, enxuguei todos os choros, encarei os pesados olhos da tristeza que ora caminhava pela sala ora se deitava em minha cama. O hálito da tarde que se esvaía alimentava as nuvens que meu céu pedia.
E o silêncio me contemplava, parecendo aguardar o quanto minha alma ainda ventaria penumbra e desconsolo.
Mas o martelo quebrou tudo. Deixou o desorientado silêncio a bater cabeça. Fez com que o encapelado mar da angústia se recolhesse em falsa calmaria. Empurrou a tristeza ao porão escuro e frio no qual ela se nutre. Eu me levanto, acendo as luzes da casa, pego o livro esquecido sobre a mesa, passeio olhos em desatenta leitura e fico a ouvir o martelar, o martelar, o martelar...

11.4.07

Para você

Aridez é oásis de escassez em meio à opulenta vastidão.
Há dias em que ramalhetes de mãos se integram às minhas em afetuosidade cordial; constelações de estrelas tácteis tentam desanuviar o horizonte das relações sociais. Mas, ao anoitecer, se me faltarem teus dedos em pétala ou se teu céu sem nuvens não tatear nosso horizonte, não irei me valer dos ramalhetes nem das constelações.
Há dias em que meus olhos pisam continentes de palavras; incontáveis oceanos de vozes inundam os meus ouvidos. Mas, ao anoitecer, se faltar a ilha de frases de um bilhete teu ou se de tua boca não fluir rio algum a molhar o que minha alma ouve, não irei me valer dos continentes nem dos oceanos.
Há dias em que o vento que move os Homens espalha corpos por toda a extensão de espaço pela qual me movimento.
Mas, ao anoitecer, se teu corpo é apenas espaço em meu leito, a Noite vocifera noites plenas de ausência.

7.3.07

A noite, o sono, um homem, uma mulher

Sonolento, ele abre os olhos e vê a mulher ajoelhar-se na cama, colocar as mãos sobre o leito e avançar em sua direção com leve sorriso. A luz do abajur cria um halo em torno dela, fazendo com que ele tenha a impressão de ser a amada a fonte da luminosidade que passeia pelo quarto. Quando o rosto da mulher está quase tocando o dele, o homem cerra pálpebras e apenas sente, nos seus, o gosto dos lábios dela. Agora quem sorri é ele, torna a abrir os olhos, ainda com dificuldade pela sonolência que lhe neblina os sentidos.
Ela se deita ao seu lado, o homem se vira, e o rosto de um é margem oposta ao do outro – entre eles, um caudaloso rio de silêncio e quereres.
A mulher coloca a perna direita sobre as pernas do homem e o envolve pela cintura com o braço direito. O sono recolhe-se de vez a um estado de latência. E o homem olha a coxa sobressair da fenda do roupão, desliza as costas dos dedos da mão esquerda na face da mulher, beija-lhe a testa.
A mesma noite, que há pouco sombreava cansaço no homem, esvoaça pelo aposento cálidos desejos alados, que caem sobre os corpos e os alimentam com a troca dos toques de mãos e lábios.
Esquecidos da noite e do sono, o homem planta um sussurro próximo ao ouvido da mulher; ela fecha os olhos para senti-lo. Ele rega-lhe a boca com úmidas palavras não ditas; ela cria tempestade em líquidas frases soluçadas; O homem lhe semeia as pontas dos dedos pelo corpo; a mulher espanta a aridez de sua pele e cobre-se de arrepios.
Cúmplices, a noite consome seu longo fôlego em cadenciada respiração. E o sono sabe que terá um repouso prolongado.

7.2.07

Escuta o rumor de meus galhos

Sempre gostei de desenvolver teorias absurdas e defendê-las para você. Adoro perceber seu espanto quando, no meio de uma conversa séria, eu inicio um assunto perguntando, por exemplo, se você sabia que as novas gerações de esquimós tinham a pele mais e mais clara para não serem tão facilmente atacadas pelos ursos polares; ou então eu dizia que os monges tibetanos, cansados de sofrerem opressão pelo governo chinês, decidiram-se por abandonar suas crenças, a renegar sua fé.
Você arregala olhos, meneia a cabeça, entende o disparate e nós rimos, especulando as conseqüências de cada uma dessas idéias malucas. Depois eu te beijava, despedia-me e ia para minha casa.
Um dia, pouco antes de decidirmos que não mais haveria minha casa ou sua casa, mas a nossa, eu disse algo em que realmente acredito, apesar da estranheza do pensamento: os homens, somos todos árvores.
Você riu até mais não mais poder. Eu permaneci sério. E nada disse.
Não consegui te dizer que homens e árvores olham a passivamente a paisagem; que uns e outras se fixam no solo que melhor os acolhe; que ambos abrem-se em corpos e copas ao Sol; não te disse que homens e árvores subjugam-se ao marulhar manso das águas dos rios.
Não te disse nada disso. Mas quero dizer da árvore que eu era e daquela que agora sou.
Antes eu tinha você, voltava para minha casa e estendia raízes por entre escada e sala e cozinha, espraiava galhos por jardim e grama, plantava-me no vasto solo de meu quarto. Agora eu tenho você, volto para nossa casa e permeio minhas raízes entre as suas; meus galhos fazem rumor por entre os seus, tecendo a folhagem de nossas conversas; planto-me na fértil terra de amor de nosso quarto; deixo que a pele de meu tronco procure a sua pele em nossa cama.

9.1.07

O tronco e a corredeira

Pleno de secos galhos e de falta de vida, o tronco se desprende da margem onde um dia foi árvore e despenca no rio. No início, parece não saber o que fazer, qual caminho seguir. As águas tratam de mostrar-lhe sua única e bastante opção: entregar-se para que elas, águas, o carreguem.
Sem forças para dizer “não quero”, sem energias para gritar “deixem-me aqui”, o tronco embala-se rio abaixo, solta o corpo descarnado de casca e folhas, deixa-se ser lambido pelas úmidas línguas da água.
Alguns quilômetros adiante, sua carcaça está alquebrada pelo choque contra barrancos, muitos de seus galhos se perderam em meio à vegetação que cresce nas margens e que se permite ser esticada rio adentro, em clara zombaria a tudo o que a correnteza toma pelo braço e simplesmente leva e leva e leva ...
Em certos trechos, a correnteza torna-se mais forte, arremeda-se em corredeira; cria refluxos que engolem inteiramente o tronco antes de libertá-lo com menosprezo; brinca de jogá-lo acima do leito do rio, para recebê-lo de volta em abraço frio e molhado; empurra-o de um lado a outro, mostrando-lhe que ao esqueleto cabe apenas tentar manter seus ossos.
Com a garganta, que nunca teve, seca, o pedaço de madeira aceita em silêncio ser arrastado por líquidos caminhos. Vez ou outra, contempla a paisagem que corre nas barrancas. Nesses momentos, sente um torpor melancólico ao enxergar tantas árvores como também ele o fora; dói-lhe as rígidas fibras vislumbrar o verde das folhagens que também ele tivera; percorre-lhe o corpo uma virgem vontade de chorar.
E o tronco não chora porque os olhos que não tem são incapazes de salgar o rio.