23.11.13

Uma maravilhosa onda humana

         A caixa de papelão é fina e o homem a retalha com cansada veemência. Descarta a tampa e o fundo, restam quatro placas empilhadas uma sobre a outra e envolvidas pelo defeituoso laço de um abraço.
         O homem olha a rua: esquerda ou direita?
         Passam poucas pessoas por ali. A essa hora da manhã, o movimento na confluência com a avenida deve ser maior. Decide, então, tomar a sua esquerda, subir a rua.
         A cadência dos passos pode demonstrar indecisão, mas é tão somente ausência de pressa. Os pés não martelam o chão: tocam-no com um subentendido pedido de licença, às vezes se arrastam como se houvesse o desejo de limpá-lo da sujeira - que ao chão e ao homem não incomoda.
         As quatro placas de papelão trocaram de braço. O peso é nenhum, a troca foi feita apenas para liberar a mão direita para que ajeitasse a barra da calça, que se prendia sob o tênis num atrapalhamento de excesso de pano.
         Para.
         Olha rua acima, olha rua abaixo.
      O vento cresce em velocidade próximo à esquina. Avoluma-se no corredor de prédios que sempre se espremem à proximidade de uma avenida.
         Falta somente um quarteirão, não compensa agora mudar de direção rua abaixo. Mantém a escolha e retoma os olhos no chão, os passos ora arrastados, ora pisados com um despropositado e impensado cuidado.
         Na esquina, uma onda - uma maravilhosa onda humana - move-se com a matinal pressa das pernas; com o necessário apoio do balanço dos braços; com a descombinada, mas onipresente, contrição de rostos.
         O homem passa a mão pelo rosto, joga no chão três placas de papelão e sobre elas se ajoelha. Abaixa a cabeça, levanta o olhar - a varrer com ele o movimento das pessoas -, abre a mão direita em concha, a esquerda segura a outra placa onde, há pouco, um pedaço de giz rabiscou: "TENHO FOME".

17.9.13

A essência do silêncio

         Lembro-me de que o banco de cimento estava gelado. Devia ser por causa do orvalho da madrugada, porque sei que havíamos saído de casa muito cedo.
         Eu não conseguia encostar os pés no chão - aliás, muito longe disso em meus três anos de idade -, e por isso levantava uma perna e outra para escapar do contato com o banco.
         Não me lembro se passei frio, mas minha mãe deve ter me agasalhado. Só me lembro mesmo é do gelado do banco e de que reclamei para minha mãe.
         O banco existe até hoje em frente a Instituição. Acho que cabem umas três ou quatro pessoas nele. Não sei se naquele dia havia mais alguém além de mim e de minha mãe.
         Disseram-me que fiquei muito tempo sentado ali - disso também não me lembro.
         Além de ser muito pequeno, o fato de nunca ter enxergado restringe minhas lembranças a sensações outras da impossível visão.
         Não sei se aquele dia demorou mais para amanhecer, se estava nublado ou se o sol já chegava ao pé do banco - assim como não sei sobre isso em nenhum dos outros dias.
         A escuridão em que nasci dói mais nas pessoas que me conhecem do que em mim. Ela é minha companhia, alguém com quem posso dialogar a qualquer momento, o espaço onde projeto todas as minhas percepções para poder ver o mundo.
         Aqui, na Instituição, as freiras me ensinaram a ver no que não é visto, assim como no silêncio do não dito há a essência que antecipa a fala; ensinaram-me a viver no escuro aproveitando a claridade que nos ronda.
         Por gostar demais daqui, jamais quis partir. E as freiras me deixaram ficar.

         Não sei porque estou falando do banco gelado, mas daquela longínqua manhã em que cheguei, resta-me a lembrança dele, a certeza de que reclamei e a essência do eterno silêncio na resposta que nunca ouvi da minha mãe.

15.8.13

Perfume


         Fazia dez minutos que eu havia chegado ao restaurante, uns cinco minutos que eu havia me servido de salada na pista fria quando senti o perfume.
         Claro que fiquei paralisado - estou até agora.
         A comida se recusa a descer, nunca folhas de alface rodearam por tanto tempo dentro de minha boca, como se permanentemente infladas pelo vento da ansiedade e, assim, incapazes de escolher o direto e único caminho do estômago.
         O perfume é dela. Não é parecido com o dela - sei que é ela logo aqui, provavelmente na mesa atrás da minha.
         Desde que, nessa mesma mesa, ela me disse "preciso de um tempo", não a via almoçar aqui. Há um mês e dez dias ela não almoça aqui. Há um mês e dez dias que eu reviro salada e comida numa obrigação desesperançada.
         Já que veio, por que me evita? Por que não vem logo falar comigo?
         Não vou me mover, não vou olhar para trás e fingir surpresa ao vê-la: ela pediu para ir embora, ela que peça para voltar.
         O barulho dos talheres no prato dizem que ela almoça lentamente - deve estar olhando-me as costas e escolhendo o melhor modo de me abordar. O silêncio, a vir da mesa, diz estar ela sozinha: mais um claro sinal de que veio para conversar comigo.
         E o perfume me rodeia, tira-me a fome, seca-me a boca, encharca-me as mãos, lança-me o corpo numa palpitação sem ritmo, numa asfixiante espera de um toque no ombro, do meu nome modulado em uma voz indecisa e suave.
         Um mês e dez dias sem sentir-lhe o perfume. Um mês e dez dias sem perfume algum - apenas a crescente sensação de nunca mais.
         Sensação afogada pelas ondas do cheiro dela, pela certeza da mão próxima ao meu ombro, pela segurança do meu nome em tom de súplica.
         Venha. Um mês e dez dias foi tempo demais. Ajuda-me logo a aplacar o vento da ansiedade.

         Ancore em minha mesa a esperança perfumada de um almoço normal.

19.6.13

Nosso país suspenso


         No centro do quarto, a cama é um país inteiro.
         Sem fronteiras com outros países, guardado por abismos rasos que despencam de suas bordas para a finitude mundana do chão.
         Dois tapetes, um de cada lado, são portas constantemente abertas, em tecido e espera, para liberarem os corpos - nossos corpos - à concretude quotidiana. São, também, portas para deixarmos o mundo e entrarmos em nosso país.
         Sentado em uma poltrona, fiscalizo-lhe os limites, percebo o cuidado da cabeceira em evitar o contato com a parede a se estender atrás dela - não lhe permite toque algum: as leis aqui são nossas.
         Olho e observo tudo enquanto espero por você.
         Poderia tomar momentânea posse sozinho - momentânea -, mas agora prefiro observar e esperar.
         Um silêncio constante alardeia-se pelo ambiente e me traz a dúvida: ele nasce do mundo ou é o leito que o produz?
         Penso em compará-lo ao silêncio de outros aposentos e me detenho ainda no nascedouro da ideia: soa-me tolice sem sentido.
         Então você entra, retoma um assunto que discutíamos há pouco, transita pelo quarto com a naturalidade lógica de quem anda por um quarto, pelo seu quarto - pelo nosso quarto.
         Abre o guarda-roupa, retira uma camisola, troca-se enquanto fala e ri e gira-se pelo espaço.
         A poltrona é já terreno estrangeiro: levanto-me e também me troco.
         Você senta-se na cama, gira pernas, joga o corpo para trás - e se liberta do mundo.
         Igualmente me libertando, eu me deito, deslizo os pés pelo antártico terreno do lençol em busca do porto de teus pés.
         Porto que me trará, em nosso país suspenso, o continente de seu corpo.

6.5.13

Nau frágil


         O que me trouxe até aqui foi um corte a bombordo em minha proa. Na realidade, não foi um simples corte: um rasgo enorme retorceu o metal de minha carne - em pouco tempo, o mar mais e mais em minhas entranhas deixou-me instável. Adernava desconcertado, tentava em vão o equilíbrio.
         Águas estavam onde não deveriam estar - não dentro de mim. O mar me invadia em um azul abraço a me puxar cada vez mais para dentro de si.
         Veio o momento em que parei de sentir todo e qualquer vento, nem uma brisa ao menos, apenas a liquidez molhada a encher o meu corpo com leves palmadas azuis; parei de sentir a incalável voz do sol e seu incessante discurso de calor, chegavam-me somente uns raios difusos, carregados de um calor opaco. O horizonte deixou de ser uma linha para se tornar uma infinita massa escura. O céu desapareceu, surgindo em seu lugar a ondulante massa da superfície do mar.
         E o silêncio - uns últimos marulhos de meu corpo ao entrar de vez na água, e o silêncio.
         Então, a sensação desconhecida para a qual eu não tinha nome - hoje, sei chamar-se descida.
         Afundei, e desci, e desci, e desci sob o peso de mil bocas se calando sobre mim, sob o peso de mil mãos azuis a me puxarem para baixo, sob o peso de um mar inteiro, que alisou sua superfície, afastando o redemoinho que criei - último mudo pedido de socorro -, e para sempre me escondeu.
         De modo que cheguei até aqui por um rasgo a bombordo em minha proa. Resto-me semi-deitado. Reaprendi a enxergar: apesar da escuridão, vejo meu horizonte infinito, enxergo os dias e as noites. Reaprendi a ouvir: há de se fazê-lo para entender os humores do mar.
         Mas, acima de tudo, reaprendi a navegar: a correnteza assoma-me o corpo dia e noite, tornando-me atento barco de minha flotilha solitária.

3.4.13

O nevoeiro


         A claridade calada das tardes de domingo invade a sala enquanto o tempo se esgueira preguiçoso pelo mundo, fazendo com que as horas sejam o lento sobrepor de pesados corpos de minutos.
         O homem salpica o olhar pelas páginas de um jornal, a mulher finge atenção ao programa na televisão, mas o pensamento está longe - tão longe que se encontra em lugar algum: os pensamentos pulam desenfreados, deixando-a na letargia calma dos alienados.
         A lembrança de algo acontecido com sua mãe faz a mulher soltar uma frase, relembrando ao homem a história contada.
         Sem tirar os olhos do jornal, ele diz uma palavra, apenas uma palavra a expressar sua opinião sobre o assunto - e que a prevenção mantivera até então escondida no leito seco onde opiniões indesejadas ficam à mingua, até se dissolverem pela ação meticulosa da prudência.
         A mulher saltou os olhos na direção do homem, mas ficou quieta. Ainda olhando o jornal, o homem sentiu a traição do automatismo na resposta, mas como a mulher nada disse, ele também ficou quieto.
         A palavra solta pela sala, vasculhando móveis, tateando paredes, espreitando-se insidiosa nos ouvidos da mulher, cria um nevoeiro de discórdia que não ofusca a claridade da tarde, mas traz a quase palpável penumbra da desarmonia.
         Ela agora tem algo em que fixar o pensamento, a televisão é somente uma sucessão de sons e imagens. Ele tem algo em que ficar atento, aguardando o desdobramento, o jornal é apenas um apêndice.
         E o nevoeiro isola um do outro, oprimindo o ar, deixando intacta unicamente a aparência de normalidade.
         À noite, a mulher, sem fome, bafeja o ambiente ao dizer ao homem que vai lhe preparar um lanche.
         Ele lhe pergunta se ela não quer um pedaço. Sem o olhar, ela diz com a cabeça que não.
         O homem deixa metade do lanche para a mulher, mas nada fala - apenas o deixa, como se metade lhe fosse suficiente.
         Quando, após alguns segundos, ela toca no meio lanche, fere de morte o nevoeiro.

27.2.13

Estátuas


         Compadeço-me da penúria da vida das estátuas - homens moldados a cobre ou pedra, filhos nascidos já órfãos, gerados e gestados na lentidão de um útero feito de dedos e cinzel.
         Compadeço-me com a espera permanente de seus dias e noites: o que mais podem alcançar senão a vida perenemente suspensa numa respiração de fôlego único?
         Basta-me olhá-las nos olhos, crispados no espanto de se acharem ocos, para sabê-las tristes.
         As orelhas prontas a todos os sons, que não ouvem e que apenas ricocheteiam na dureza de seus ouvidos, reverberando, na massa compacta de seus cérebros, o ininteligível mundo que as rodeia.
         Apiedo-me com a perpétua posição a que são condenadas: o desejo de um movimento traído à socapa pela vontade fria do escultor.
         Imagino-lhes a força descomunal ao tentarem se erguer, ou sentar-se, ou girar sobre os calcanhares, que às vezes lhes faltam. Também essa espera a lhes preencher dias e noites: o instante em que a rigidez se descuidará e o vento as moldará num sopro despretensioso.
         As bocas, seladas num mutismo de censura, pregam um discurso sibilado pelo ar que lhes esfrega as faces.
         Os estômagos congelados sofrem de saciedade - sensação estranha a quem nunca sentiu fome.
         No início, o tempo lhes passeia nos corpos fumos do incenso de todas as eras e não lhes consegue impregnar o perfume da maturidade. Então, ele as abraça com a névoa do desgaste, e elas resistem. Por fim, o tempo tenta afogá-las no caudaloso rio da decrepitude. Vencido, o tempo delas se cansa e as esquece, deixando-as entregues à terra impiedosa, que aos vivos e mortos cobre.
         Entristece-me pensar que um dia, redescobertas por humanas mãos, desenterradas e despidas do peso de muitos e de todos anos, continuarão ainda com os olhos crispados de espanto.
         E a pedir, numa voz muda de agonia, que o tempo tenha piedade, e volte a se lembrar delas.

Luís H. Borba