25.5.11

Houve um tempo

O choro de um bebê é latifúndio de som no início da noite. Sentado na calçada, encostado à parede da casa, o homem ouve o berreiro sem lhe prestar atenção. Cavuca os bolsos puídos e encontra duas notas de pequeno valor: tudo o que possui está nessas duas notas abertas em suja mão e espalmada.
Mas não eram três as notas que tinha?
Uma nota a mais representa a gritante diferença entre pagar por um banho e um prato de comida ou somente a comida.
Vasculha os bolsos com morna expectativa de os dedos mastigarem outra nota, mas nada - o banho terá de esperar mais um dia. Aperta o dinheiro, guardando-o de volta na calça, sem desolação, sem alegria.
O bebê ainda chora.
Houve um tempo em que um bebê chorava ao seu lado, em que uma mulher gastava dias lhe cobrando responsabilidade em gritos que lhe chegavam pastosos ao se desmancharem nos etílicos caminhos de sua mente.
Tudo isso tremelica em sua cabeça em bruxuleios de uma chama fraca e inconstante. A imagem de um passante qualquer é vento despretensioso a apagar o que poderia ser uma lembrança.
Sua mente agora é poço vazio, um pântano lodoso a digerir imagens sem as pensar, sem as sentir; um espaço árido onde todas as memórias letargem perenemente entorpecidas pelo álcool.
Levanta-se, empurrado pelo desejo de comer. Pega a sacola em que duas camisetas não prometem coisa alguma - apenas o acompanham para, em um momento, cobrir-lhe o corpo imundo.
Olha para a direita, para a esquerda, sabendo pouco importar a direção escolhida: terá mais uma vez de vencer a noite com seus enormes cães que se entredevoram.