7.12.09

A noite em noites e penumbra

Faz pouco mais de meia hora que se deitaram. A mão esquerda da mulher remansa sobre a direita do homem. Conversam a meia luz, pois ele adora a penumbra – a claridade ostensiva esconde os detalhes, e são os detalhes a ínfima textura de tudo.

O homem a puxa para junto de si, beija-lhe a testa. A penumbra lhe mostra o preciso contorno da coxa escapada da cumplicidade da camisola, a depressão das costas à mostra, os suaves pêlos da nuca.
O corpo da mulher se estremece em seus braços quando os pneus de um carro gritam freada na rua, depois de quase atropelarem a desatenta fome de um vira-lata. O motorista xinga, o cão recolhe culpa e susto entre as pernas, e se enrola sobre si mesmo sob o incessante discurso de luz de um poste. Com negras órbitas de universo, o animal olha a água, recém liberta de um cano incompetente, desembestar-se rua abaixo em líquidos atropelos de corrida – corre amparada pelo onipresente leito da sarjeta até o abrupto despencar no abismo de um bueiro. Em seu percurso, a água enche o silêncio da noite com úmidos murmúrios. Mais alguns minutos, e um outro carro desce a rua espalhando o metálico ranger de suspensão cansada. Logo a seguir, a voz de alerta da buzina da moto de um vigilante grita tranqüilidade e desperta o cão. E, serenamente, o sono se espreguiça e começa a se espalhar no vasto corpo da noite.
No quarto, o sono que pegou de surpresa o cão, a água, a rua vira o rosto à penumbra e se esparrama sobre os corpos nus do homem e da mulher.

11.11.09

Nada

Saio do banho. Ainda nu, sento-me na beirada da cama e contemplo o nada. Por alguns instantes, sinto o silêncio engolfar o mundo, e em meus ouvidos jorra o mesmo a me inundar os olhos: o nada. Nos pés do leito, há uma calça e uma camisa na vazia espera de se empanturrarem com humana carne. Enxergando e ouvindo o nada, esqueço-me de lhes servir de alimento.
Passo a mão pelo rosto, aperto os cantos dos olhos com o polegar e o indicador, suspiro.
Suspiro longa e profundamente, nutrindo o nada de horizonte e de ausência de som.
Como se a vida me houvesse sido secular, pesa-me cada célula do corpo.
Levantar-me, colocar-me em movimento é extravagante necessidade de um homem que não sou eu – não nesse momento.
O dia deve estar novamente começando sua rotina de luz. Em mim, ainda a noite.
Será que uma cachoeira não se cansa jamais de rolar-se em água dia e noite? De crispar-se nos mesmo respingos, contorcer-se nos mesmos redemoinhos?
Uma rua aceita sempre ser prédios e portas a se abrirem e a se fecharem? Conforma-se em arranhar-se sem cicatrizes pelas rodas dos carros e pelos pés dos homens?
Nesse momento, o nada a me invadir os olhos tem muito mais cor do que todos os meus mesmos dias de sempre, tem mais som do que toda a mesma quotidiana música de minha rotina.
Nu, sentado na beirada da cama, sinto-me útil como um quadro plantado em alva parede, a contemplar o mundo e ser por ele contemplado. Sinto-me útil e aliviado.
Esqueço-me.
De repente, sem que eu saiba ou entenda o porquê, pego-me com a calça e a camisa pregadas ao corpo. Acho-me dentro do meu carro a, de novo, arranhar ruas.
Sou, mais uma vez, seca cachoeira a despencar no abismo do dia.

21.8.09

Custa-me

O Cristo pregado sobre minha cama se esquece do tempo e não lhe pesa o peso dos velhos. Enquanto sob o amontoado de pele enrugada de meu corpo, a buscar refúgio em lençóis e cobertores, parece habitar mil velhos.
Custa-me.
Custa-me respirar, custa me mover, custa-me virar os olhos e enxergar o Cristo.
Antes procurado, o silêncio agora é inoportuna companhia, a repetir-me numa onda de dores: velho...velho...velho...
O que será quando o Silêncio calar o silêncio e eu não mais em dores ouvir: velho...velho...velho...?
Custa-me.
Custa-me fazer meus braços serem braços, meus dedos serem dedos, fazer minha cabeça aninhar-se no travesseiro como a cabeça de quem repousa – o repouso que minha cabeça, que o meu corpo buscam, esse eu ainda não quero.
Custa-me olhar o Cristo e vê-lo de fronte pendida, a me fitar pregado sem cruz no calvário de um monte de lençóis.
Estou atracado ao meu leito, confinado ao horizonte da cabeceira de minha cama, à deriva nas dores.
Um alarme dispara na vizinhança, e me oprime a sensação de ser a chegada de um socorro que me parece injusto – apesar de querê-lo, não sinto razão para que ele venha.
O que será quando o som de uma sirene for apenas o grito entrecortado de auxílio, a asfixiar-se lentamente em meus ouvidos?
O que será quando de meu horizonte se desvanecer o Cristo pregado sobre meu leito?
Entra minha mulher, pergunta-me como estou, passa-me a mão velha na cabeça, deixa-me na testa um beijo seco, um trêmulo afago de velha em meu rosto velho, sussurra-me uma indecisão qualquer à guisa de dizer algo. Antes de sair, pesada e vacilante, dá-me a escolher entre a luz acesa ou apagada: qual prefere?
Balbucio qualquer coisa cansada, com o desejo de dizer: prefiro, acesa ou apagada, a luz que me faça ver melhor.

11.7.09

Oryza

O branco monte de grãos mais uma vez se despe de água.
Sua sina tem sido vestir-se de água e dela se despir. Cresceram e tomaram forma quando a corrente líquida escorria incessante pelo vale e os cobria com renovado frescor aquático. Seus dias e noites eram líquidos, e a luz tinha de se molhar antes que a recebessem.
Um dia, tudo estava liquidamente calmo em um instante. No instante seguinte, era a colheita – e o que havia era a sensação desconhecida de ar e vento e um sol seco a lhes arrancar a úmida vitalidade.
Depois veio a seca, uma longa e única seca. Durante dias e noites, atravessaram o deserto sem areia da estiagem sem nuvens e sem céu. Então as mãos sempre famintas de um cozinheiro romperam a embalagem que os prendia e os libertaram, os grãos. Têm sempre fome as mãos de um cozinheiro – corpos frenéticos de braços, boca e dentes feitos de dedos.
As mãos libertaram os grãos da árida latência, jogando-os no líquido frescor da água corrente, despertando-lhes na memória o vale que nunca mais.
Abraçados, apertados e mastigados muitas vezes pelos dedos das mãos, os grãos renovaram-se em água.
Agora, o monte branco é corpo único e repousa. De suas veias, formadas pelos espaços criados no contato entre um e outro grão, esvai-se todo o insípido sangue feito de água.
Ali ao lado, a alquimia culinária do cozinheiro invoca o fogo – e este escorre, em lambidas de língua azulada, pelo fundo da panela.
Logo o cozinheiro encherá de calor a alva pele dura dos grãos, sussurrará monossílabos de sal, irá cantarolar notas curtas de cebola e alho antes de criar o dilúvio final.
Imersos em água e calor, os grãos pouco a pouco se esquecerão de si mesmos para se incharem com os desejos das mãos famélicas do cozinheiro e se vestirem de arroz.

15.6.09

Moinho

O vento é o deus que me move.
É alma, que não me habita, a vagar pelo mundo perdida e absorta, rodeando-o sem destino à procura da carne estática e rígida de meu corpo. Não pode ser essa brisa vacilante, esse sopro escapado de aéreos lábios sem rosto. A me possuir tem de ser a enchente de ar revolto que escorre pelo espaço em enormes vagas invisíveis. A esse vento, entrego-me. Entrego toda a paciente latência de minhas pás – e as ponho em movimento.
Sem o vento, existe em mim somente a aridez resignada de um céu sem nuvens. Não padeço de ausência, não padeço de lembrança ou de tristeza – a dor só existe na consciência de ser sentida. E, sem o vento, sou totem de minha morta religiosidade, a sustentar em silêncio o peso de cada um de meus tijolos, a força inepta e inútil de minhas pás imóveis.
Uma brisa, como essa que agora me roça com línguas e de dos mornos, simplesmente me desperta a vontade de beber ar e voltar a viver. Soprar-me o corpo de cima a baixo instiga-me a fome de devorar lufadas e lufadas, sem digeri-las no etéreo estômago que não tenho.
Essa brisa me traz de novo o sol, timidamente limpa minha pele do pó secular das horas ou dias em que estive morto. Prepara-me o ânimo para o arrebatamento, para a expurgação completa da morte, para o lento ranger inicial das engrenagens.
O sopro agora se alimenta de sopro e corre em mim – um sangue fluido e descarnado.
Logo o vento chegará pleno, espírito vestindo-se de espírito a comungar-me alma.
Espreito o horizonte, reteso pás.
Espero.

7.5.09

Santidade

Crava os dentes no lábio inferior, torce o lábio superior em sorriso esgazeado, arregala os olhos, ainda que desatento ao mundo a sua volta. Uma gota de suor pavimenta líquida estrada errante em seu rosto; uma outra lhe nasce da testa e se deixa rolar sem preocupação com destino. Logo vem outra, e outra...e o rosto do homem se torna mapa serpenteado de rotas sinuosas criadas para serem apenas caminhos de si mesmas.
O braço direito se estica todo ao alto, fugindo com ênfase da proximidade com o chão. Na mão direita, o retrato amassado de uma santa aninha-se entre os dedos sujos do homem.
Dois passos curtos precedem dois passos apressados, que se tornam a tempestade de silenciosa corrida – silêncio perturbado apenas por uma ou outra gargalhada seca.
O homem corre até a esquina e para. Olha a ponta do braço esticado: a santa sorrindo o sorriso contido e leve dos santos. Solta um grito de prazer e recomeça a correr, olhos na santa, dentes cravados no lábio inferior, suor alimentando-se de suor.
De repente, solta o papel, liberta o retrato, interrompe a corrida. Com atenção extrema, boca agora aberta, vê a folha, em indeciso voo, buscar o solo do qual procurava afastá-la.
O papel erra lentamente pelo ar. E a santa, de olhar suave e sorriso ingênuo, voa rumo ao chão. Às vezes, o vento lufa-lhe asas imaginárias – e a santa sustém-se no ar parecendo querer evitar a queda.
Quando o papel toca o solo, o homem resta alguns segundos sem ação.Enxuga com as costas das mãos o rosto molhado, olha ao redor.
Uma mulher, que caminhava pela calçada, passa ao largo do homem e da santa, apertando a bolsa contra o corpo, usando o canto dos olhos para que o medo vigie o homem. Afasta-se rapidamente. Olha para trás e lança um disfarçado sorriso de desprezo.
O homem então se abaixa e pega a santa – para de novo fazê-la boiar no ar entre seus dedos imundos.

11.2.09

À luz do escuro

Um estrondo iluminou o silêncio tão logo a escuridão vergou seu corpo sobre meu pedaço de mundo.
À minha volta, tudo existia sem peso enquanto havia luz: os potes de creme, meus perfumes, a toalha branca, o espelho que não me via, a água quente chovendo da metálica nuvem do chuveiro. Tudo existia sem que eu o percebesse. Tudo existia sem o peso da existência. Até os barulhos no banheiro, em casa, na rua existiam como único e grande ruído a impor sua caótica presença em meus ouvidos. E principalmente, havia minha nudez simples, clara, despida de mistério sob a luz.
Agora, sob o hálito pegajoso da escuridão, tudo me parece ter mil nomes, mil olhos. Tenho a impressão de que os objetos cresceram, mutiplicaram-se, esparramam-se aos meus pés e não posso me mover sem tocá-los.
No escuro, o mundo cresce.
Arrasto com cautela os pés pelo chão molhado, como se um passo em falso me precipitasse em um abismo negro e sem fim. Meu desejo era ficar imóvel, esperando o retorno da luz, mas o banho já está frio. Ouço a água gritar o desespero da queda ao bater no piso e só então me dou conta da necessidade de estancá-la. Fecho a torneira. Incomodou-me profundamente a água gelada escoar-me pelo corpo: o líquido parecia um ser viscoso a me prender em teia insgotavelmente renovada. Causou-me mal-estar as gélidas unhas dos finos dedos de água a me arranharem a pele.
Ainda sinto em meus seios, na barriga, nas costas uma efervescência silenciosa a me eriçar os pêlos; a tornar-me nus em interminável e desconhecido corpo.
Eu poderia tatear o liso corpanzil negro da escuridão à procura da toalha. Mas isso não calaria todas as bocas que, no banheiro, em casa, na rua, insistem em me obrigar a ouvir seus gritos mundanos.
Somente a luz seria capaz de fazer com que eu os jogasse na banal vala da misturada indiferença.
Mas a luz ainda não voltou a afugentar o escuro, fazendo-o esconder-se atrás de tudo e se tornar sombra.
E no escuro, o mundo cresce.

15.1.09

Sobre o corpo

O céu a me cobrir é uma marquise descascada de onde, de quando em quando, despencam lascas de látex à guisa de gotas aladas. Meu sol é uma lâmpada sem a casca de um lustre – os meus dias são às noites. As nuvens são os buracos na pintura – um dia, uma tempestade de tinta as varrerá do meu céu. Estrelas, eu não as tenho. Sou um mundo de corpo único, pedaço de concreto estirado entre duas paredes, ponte sem abismo entre a porta de um edifício e a vastidão de outras calçadas.
Sobre meu rígido corpo, todas as manhãs, escorrem tímidos rios de água, pastoreados desordenadamente pela vassoura cega de uma velha. O líquido tenta me penetrar, agarra-se às mínimas reentrâncias de minha pele feita de cimento e pedra. Mas a velha é pastora obstinada a não perder seu rebanho ao manusear seu cajado – e o calor do dia carrega os desgarrados em seus braços etéreos.
Sobre meu tenaz corpo, forjado à secular têmpera de cimento e areia e pedra, passos distraídos embaralham em mim pegadas que não guardarei, e das quais terei apenas a lembrança em pó.
Os anos têm me trazido poucas e espaçadas rugas, nas cicatrizes desalinhadas das rachaduras.
Em meu compacto corpo, nenhum outro consegue subjugar-me a aspereza decidida: atritam-se, pesam, esfolam-se sobre mim e se tornam tão somente um passado branco e silencioso.
Sobre meu duro corpo lunar de minúsculas crateras, passeiam formigas, baratas, moscas em um falso balé musicado pela necessidade de sobrevivência.
Sobre meu perene corpo de concreto, todas as noites, repousa a carne mole e alcoolizada de um humano corpo.