8.3.05

Os barcos sabem esperar

Atracado.
O espaço entre o veleiro e o cais nunca se mantém fixo. As bóias de defensa se chocam contra a murada do cais e poupam a carne do barco. A embarcação nada diz, de nada discorda, com nada concorda.
Atracado.
A maré oscila; o mar estica os milhares de tentáculos de que é feito e carrega lo veliero para cima; o mar retrai cada célula de sua pele líquida e o puxa para baixo.
Atracado.
As cordas de proa e de popa que prendem le bateau a voile a terra se revezam na função de se estender e de se recolher – tanto uma como a outra não se importariam em se romper, partir seus corpos, sangrar sem derramar uma gota para que o barco, livre, partisse.
Atracado.
Nas ruas próximas, the sailboat assiste ao movimento dos carros subindo e descendo ladeiras, gritando abusos com o ronco de estridentes motores. Quieto, ele nada diz. A boca com que fala são as velas infladas pelo vento – e, em verdade, é este que esparrama palavras pelos caminhos do mar.
Atracado.
O veleiro enxerga no horizonte o fim do limite sem fim dos mares; ele conhece as palavras de todos os idiomas, reconhecendo-se em cada uma delas. No silêncio que reina em si, na quietude resignada que envolve cada pedaço de seu corpo duplo (o físico, feito de matéria; o etéreo, feito da essência das águas) existe a paciente espera pela libertação.
E eu, atracado, assisto a toda a sua calma, contemplo toda a sua mansidão.
Fico torcendo para que a quietude também envolva meu corpo duplo. E peço para ter a mesma força e aguardar pacientemente a libertação.

3.3.05

O inocente

Atravessa a rua e ganha um enorme terreno vazio para correr seu desespero sem causa. Nas redondezas, todos o conhecem, e não há espanto com os rompantes que às vezes tomam conta do homem, que passa o dia a caminhar de lado a outro, sem rumo, sem destino, sem companhia – ele e o mundo que cabe debaixo das solas de seus sapatos puídos.
Há um minuto, tudo estava calmo, o sol não lhe ardia a fronte, o vento não lhe soprava disparates, as pessoas passavam por ele e nada mais eram que vultos.
Agora, diante do campo coberto com vegetação rasteira e densa, a chuva seca torna a ensopar-lhe o corpo, a mesma descarga elétrica, mais uma vez, percorre-lhe a espinha de cima a baixo, de novo as luzes acendem e se apagam em seus olhos arregalados – e o homem corre pisando o mato com ferocidade, as mãos fechadas, o semblante retorcido na dor que o corpo não sente, dor nascida na alma, criada e alimentada nas cavernas mal iluminadas do espírito.
Corre cerca de vinte metros, pára, olha em torno de si procurando o que nem mesmo ele conhece, ameaça soltar um grito, puxa com força a camisa, mas não quer arrancá-la do corpo. As pessoas continuam a passar e a não vê-lo. Ele continua a ver ninguém, segue encharcado pela chuva, sentindo a descarga, enxergando as luzes.
Logo tudo passará.
Ele voltará a cruzar com as pessoas e nelas ainda não encontrar seu semelhante; voltará a pegar uma folha seca no chão e dela retirar a terra que lhe esconde a folha que é; voltará a olhar a claridade do sol e nela enxergar apenas o sol; voltará a admirar o verde do mato e nele sentir cheiro e gosto de mato verde; voltará a ouvir o vento soprar-lhe nos ouvidos frase única e bastante: vento...vento...vento...
E, sob seus pés, continuarão a caber todos os mundos que cabem sob os pés dos insanos.