30.1.14

Diário da ausência

         O travesseiro está no lugar, ou melhor, os travesseiros estão no lugar: o meu e o teu.
         Ainda de manhã, bem de manhã, tua camisola era o teu corpo despojado a esparramar-se sobre a cama. Agora, não mais. Sumiu, assim como sumiram teus chinelos, tua saia sobre a poltrona do quarto. Tudo ordeiramente colocado em seus lugares - gavetas e armários a minha volta, metidos num silêncio de segredos, a ocultar-me onde exatamente cada coisa.
         Mas você está por aqui.
         Resta ainda teu perfume no banheiro, sorrateiro o bastante para não se deixar dobrar e meter-se em vincos dentro de alguma dessas gavetas mudas. Mas há bastante ar - apesar de, neste momento, me parecer escasso - para ele andar e mover-se na morosa fluidez de um animal tímido. Em pouco tempo, o teu perfume terá se dissolvido num desapego nômade de quem não percebe ser o ar sempre igual - e que não lhe custaria durar-se um pouco mais no banheiro.
         Daqui a pouco vou sair. Não sei se vou correr, se caminhar. Vou sair. Tua ausência é um cão triste a farejar meus passos aqui dentro, a derramar-me olhos úmidos enquanto me movimento por toda a ordem que reina na casa.
         Quando eu voltar, provavelmente será noite. Espero que o cão tenha achado um canto ou um espaço em alguma gaveta - apesar de ter a certeza de que, durante a noite, seu uivo mudo sufocará até mesmo a gritaria das luzes, que deixarei acesas.
         Ao amanhecer, o teu travesseiro estará no mesmo lugar de agora; tuas roupas, obedientes nas gavetas e armários; a casa, organizada e limpa.
         E assim será.
         Até que, por Deus, tanta ordem acabe.

17.1.14

A livrar-se do pecado


          Sentada no sofá, ela não consegue tirar os olhos da maçaneta da porta da sala.
         Está na mesma posição desde que chegou ao apartamento, há cinco minutos...ou seria uma hora?...talvez um ou dois dias, sabe-se lá. Somente ela poderia responder, mas não tem a mínima ideia.
          Sentou-se para ver televisão, não encontrou canal que a fizesse parar de pressionar o controle remoto com o ritmado bate-estaca do indicador.
         Pegou uma revista sobre a mesa de centro, folheando-a com o mesmo desinteresse com que olhava os canais na TV. Olhou as horas e se perguntou quando ele chegaria hoje.
         O celular dentro da bolsa, a bolsa sobre a mesa da cozinha, a cozinha na longínqua esquina de uma curva que passa pela sala de jantar, fez com que desistisse de lhe telefonar para perguntar.
         De mais a mais, quase sempre o horário que ele assegura não se concretiza.
         Na maioria das vezes, um rápido chá com torradas, uma ducha na lenta preguiça do corpo a desfrutar da tepidez da água, um roupão macio a trazer afago à pele fresca, a luz solitária de um abajur fiel, as linhas solenes de um livro pego na estante, ao acaso, são companhias para suas noites de espera.
         Por vezes, o sono se recusa a aguardar quieto, a um canto do quarto, o momento em que será chamado: sobe silencioso ao leito, escorre fluidez pelos lençóis e cresce como maré cheia, até atingir com desaviso o corpo da mulher: nada mais então pode salvá-la, e a espera se converte em um corpo semitombado, em um livro escapado das mãos, em uma silenciosa luminosidade de uma luz fiel.
         "O tédio é o único pecado para o qual não há perdão" - Oscar Wilde. Ela lê na revista a frase solta em meio a outras frases, flutuando na página como ilhas, à deriva, moldadas em letras.
         Os dias podem se suceder, o sono vai envolver a si mesmo num canto do quarto, mas está decidida: continua a esperar.
         Uma hora a maçaneta vai girar.