5.3.08

Cotidiano

Arrasta os pés calçados por um par de chinelos que logo a deixará descalça. O saco que traz à mão direita é o inventário de toda a sua existência: um cobertor puído, duas camisetas, trapos de roupas. A mulher ainda possui cabelos há muito sem pentear, unhas compridas carregadas de escura sujidade, uma boca nua de dentes, lábios talhados pelo álcool fácil, um corpo em que a pele é acúmulo de evidências da falta de muitos banhos.
O Sol a abraça com um calor de que ela não sente falta, diz-lhe sobre as horas das quais a mulher não precisa.
Ela se vira repentinamente, abandonando a calçada, ganhando o asfalto. Quando atinge o meio da rua, enxerga um casal se levantando da mesa ao ar livre de um café. Tenta apertar o passo para aproximar-se e suplicar esmola. As pernas não respondem à desordenada vontade do cérebro, e a mulher quase cai.
O casal entra num carro, parte sem ao menos notar o vulto que crescia com dificuldade em sua direção, mão estendida em aridez de posse e opulência de necessidade.
A mulher olha em volta, vê pessoa alguma a quem possa pedir um chuvisco de moedas. Sobre a mesa há pouco abandonada, duas xícaras vazias, um prato com restos de salada.
Despertada pela visão inesperada, a fome chama a mendiga por todos os nomes, empurra o cansaço, toma conta do estômago.
A mulher se debruça sobre a mesa, avança sobre o prato, colhe pedaços de alface, cenoura, restos de tomates com ávidas mãos.
O Sol lambe folhas, o vento verga ramos.
E os dedos da mulher seguem lambendo o prato, sua boca sem dentes segue vergando a fome.