22.4.14

Tão natural e corriqueiro

 É tudo tão natural e corriqueiro: eu sentada na sala, folheando uma revista enquanto
espero o início de um filme, vejo-o passar com a sempre e mesma expressão corporal - costas
arqueadas, cabeça levemente inclinada, olhos fixos no chão, na medrosa procura do obstáculo
ou do abismo a lhe provocar a queda fatal. Ele sempre foi assim diante da vida: uma
insegurança em cada passo, um vacilo ante cada atitude, um jeito irritante de tatear as opções
com uma covarde indecisão para escolher.
 Distraída com a revista, mal me apercebi de sua chegada. Na realidade, não houve
barulho algum - chamou-me a atenção a sombra de seu vulto escorrendo em direção ao quarto.
 Não me espantei porque a banalidade dele é tamanha que não me assusta. E pode ser
apenas ser impressão minha que ele tenha chegado. Aliás, tem de ser impressão minha o
deslizar indeciso dele pela casa.
 Não o chamei porque nunca o chamo. Ele tem suas razões para entrar calado, eu tenho os
meus motivos para deixá-lo quieto e não me importunar com reclamações e pessimismo.
 Pode parecer estranho, mas nos damos bem assim. Estamos acostumados, depois de
tantos anos, a esse mútuo vazio a alimentar a casa; a esse silêncio meu com as fraquezas dele e
ao silêncio dele a não provocar minha pouca paciência.
 De modo que, depois de cinco semanas sem ele, deve ter sido só impressão minha aquele
vulto vacilante em direção ao quarto, que não mais é dele.
 Mas não me espanto mesmo porque, fraco como ele é, não me admiraria encontrá-lo
recolhido ao quarto, sentado na cama, a apoiar as mãos nos joelhos e a olhar o tapete numa
aflição inútil de quem não acha as palavras por temê-las tão logo lhe escapem da boca.
 Antes de o filme começar, vou ao quarto.
 E ai dele se sua covardia não estiver sentada na cama.

Tudo tão ausente

 Voltando do jantar, olho a janela da sala, que deixei com a luz acesa, e vejo a silhueta da
cortina.
 O jantar nem mereceria esse nome. Foi, como tem sido nesses meses, um momento em
que coloco à minha frente um prato de comida e me obrigo a esvaziá-lo. Nem sei ao certo o
gosto, escolho do buffet coisas conhecidas para não ter a desagradável surpresa de ser desperto
de minha distração por um sabor ruim, que me torne atento ao prato, à mesa, à cadeira vazia
diante da minha.
 Comer tem sido uma experiência de olhar o nada, mover maxilares, engolir - até que o
garfo raspe o prato numa inócua procura metálica por migalhas que já não existam.
 Tomo um gole de água, pago a conta e saio pela rua numa forçada curiosidade pela vida
das pessoas: concentrar-me nos movimentos dos outros aliena-me da ausência ao meu lado. Ao
meu lado esquerdo - sempre ao meu lado esquerdo...
 Então é chegar em casa, um pouco de televisão no quarto, e um afundamento na
escuridão, disfarçada pelo sono leve e que o dia dissipa com claridade, sem jamais eliminar-lhe
o peso.
 E todas noites há a janela, a cortina: a sombra do puxador cruzando o tecido em
obediente diagonal aprendida na repetição meticulosa de todas as tardes - quando a rua não
mais lhe interessava e você cerrava o tecido.
 Olhar essa cortina, que não mais se mexe; esse puxador, que há meses não se cansa da
diagonal; perceber esse silêncio submisso de ambos, a não reclamarem coisa alguma, faz-me
parecer que jamais saberei novamente um jantar, que jamais sairei dessa casa - tudo tão
ausente na sua ensurdecedora ausência.
 Isso me parece a eternidade.

O escuro na periferia do quarto

 Não consegue mais dormir no escuro.
 De início, deixava um pequeno abajur a um canto do quarto, receiosa de que a luz lhe
atrapalhasse o sono. Mas não conseguia dormir, apoiando, de tempo em tempo, os cotovelos no
colchão para espiar a penumbra, certa de haver percebido algum movimento, de ter notado a
passagem da diáfana nuvem de uma sombra - e pior: não conseguia enxergar o vazio ao seu lado
na cama.
 Ficar olhando o escuro fazia com que o homem se tornasse ainda mais ausente; tatear o
lençol em toda a extensão de seu braço, sem encontrar a sempiterna presença do corpo dele;
rolar pela cama, e consumir-se num breu que a levava ao abismo do leito, escancarava um
abandono que a tornava mais perdida, pois lhe criava a esperança de que, em algum lugar
daquela escuridão, o homem se escondia para lhe pregar uma peça.
 Resolveu, então, colocar o abajur em cima do criado-mudo, empurrando o escuro para a
periferia do quarto.
 Suas noites não se tornaram muito melhores, mas ao menos consegue ter o suspiro de
alguns momentos de cochilo, como agora.
 Já faz quase uma hora que ela dorme, depois da espera pelo sono em atitudes de
estátua: a rigidez de membros, a imperceptível respiração no lento arfar do peito envolto em
aparente armadura de concreto, a pétrea visão em vazios olhos abertos.
 Acorda em leve sobressalto, com a certeza de que apenas fechou e abriu olhos, e de que
está a boiar no meio da madrugada - um trevoso e invisível corpo em que a mulher lança o leito
todas as noites em estática deriva.
 Os cantos do quarto se escondem na escuridão, o lado vazio da cama está fracamente
iluminado.
 Não consegue mais dormir no escuro.
 A luz do abajur não torna suas noites muito melhores, mas ela confia que sirva de farol a
orientar a chegada da sempre redentora luz do tempo.