31.10.08

Sobre noite e estátua

A noite é neblina escura a ofuscar lentamente a claridade em pó do dia. Assopra-se vaporosa e, pouco a pouco, as trevas de sua carne e ossos pesam a negra robustez de sua massa amorfa sobre o mundo – é quando passa a se alimentar do calor deixado pelo dia.
Presa entre grades baixas, como se carregasse o peso de mil pecados, uma estátua é homem congelado a expiar perenemente.
Seus dedos rijos crispam-se na infinita incapacidade de se curvarem e serem dedos; a boca selada cala-se sempre a todas as palavras; os braços arqueados enregelam um mesmo e pétreo abraço; o rosto maciço é expressão única de nenhum sentimento; e os olhos sem sono espreitam o permanente e raso horizonte.
Quando a escuridão a tudo engole com sua boca sem dentes, o vento fresco começa sua fuga sem fim. Alisa folhas, grama, troncos e bancos da praça, sem se deter em ponto algum, colhendo e servindo à noite o calor que a alimenta.
Um holofote, há pouco aceso, ilumina friamente a imóvel figura de homem, criando-lhe na face algumas sombras duras e irreais, acentuando-lhe, ao longo do corpo hirto, contornos que somente músculos de humanas mãos podem alterar. Pelos poros que não existem em sua concreta pele, o homem-pedra começa a esfriar-se ao vento. Indiferente.
Silenciosa, a noite avança e cresce em trevas; abocanha o vento, enche seu estômago negro de calor e se expande. Quando se agiganta a ponto de engolir todos os horizontes, pouco há do que se alimentar. Então, plena de energia, a noite passa a respirar pesadamente seu hálito sobre todos os seres e coisas.
As rígidas entranhas do homem estático estão agora frias. O vento o alisa tentando descobrir algum calor; a noite ressona com suas mil bocas de trevas; o holofote ainda lhe ilumina a presença sólida – mas tudo lhe continua sendo indiferente.
Quando não há mais calor a digerir, a noite começa a se recolher, e lentamente se deita sobre todos os horizontes, dando lugar ao dia.
Erguido sobre o pedestal que lhe foi dado, congelado entre as grades baixas que o protegem do nada, o homem esculpido será sempre única e tão somente estátua.