13.12.06

Árvore

Que importa à árvore saber quantos anéis acumula em seu tronco? Importa-lhe saber a quantos anos estica tronco, ramos e folhas na direção do céu? E o que são anos, que é o Tempo?
Sua preocupação é fixar-se bem ao chão, estocar o solo com os aguilhões de suas raízes e prender-se à terra em abraço não envolvente; querer ainda alargar-se pelo espaço, dedilhando o etéreo terreno feito de ar com os galhos cheios de sua verde pele.
Oferece, ao açoite do vento, todas as faces que não possui – e resiste. Mesmo quando uma simples brisa cresce e se torna tempestade, a árvore redobra determinação, verga-se, urra com as escancaradas bocas desdentadas que lhe faltam – e continua a resistir. Raramente se entrega.
Desafia as finas e incandescentes agulhas do Sol, criando, a sua volta, inexpugnável sombra onde o frescor se deita e refresca as horas.
Recebe a chuva às vezes serenamente, às vezes intempestivamente. Mas sempre deixa a água lhe encharcar o corpo; sempre segura e engrossa pingos na massa de folhas que a reveste, soltando-os de tempos em tempos aos seus próprios pés.
Quando o Tempo, que ela não conhece, decide ser o momento de a árvore dobrar-se em única e definitiva queda, ela enfraquece o abraço das raízes, perde o desejo de alargar-se, despoja-se da folhagem.
O vento passa a evitá-la, contornando seus galhos com desprezo e lentidão. O Sol fustiga-lhe a fraqueza, fulminando com calor o frescor desprotegido de sombra. A chuva desce-lhe pelo corpo e a árvore não mais a percebe; a água escoa pela insensível carne rugosa do tronco e empoça-se perdida no solo.
Então, a árvore entrega-se, raízes-tronco-galhos, ao Tempo que não lhe importa.
E espera.

11.11.06

O sonho que Carlo não vê

Em pé na areia – seria fácil dizer “em uma ilha perdida”, mas as ilhas não se perdem. Perdem-se os homens que tentam buscá-las e tomá-las. Olhando a estreita faixa de praia – seria ainda fácil dizer “em uma ilha distante”, mas o distante para as ilhas é a extensão de terra que as afasta das águas, dos oceanos: o limite entre água e solo é que as faz serem.
Nessa ilha, o mar veste de líquido azul quase toda a vastidão de horizonte, deixando à mostra pequena parte de terra em que os homens fincam pés e salpicam amarras para seus barcos, sementes ocas a boiar e a esperar o momento de fecundar com trilhas sem formas os corpos dos mares.
Por aqui, o pequeno Carlo corre descalçada infância por caminhos de areia. Olha as embarcações saírem de manhã e mal repara no quintal azul de onde sai a colheita de peixes que elas trazem ao final do dia. Ao longo da tarde, ora molha os pés, ora mergulha no mar, embebedando-se de sal, sem prestar atenção ao líquido que retira o sol de seu corpo. Seca-se à sombra de uma árvore que ninguém plantou, e esparrama sono nos ventos alísios. À noite, deita-se tão logo escurece, ouvindo às vezes histórias de redes de pesca e de vagas, sem notar as estrelas gritarem eternamente, com silenciosa luz, as histórias de suas vidas que já não mais são.
Em sua ilha nem perdida nem distante, o pequeno Carlo sonha com ilhas cada vez maiores. E enche-se de prazer ao imaginar que delas poderá lançar seus barcos, que poderá se refrescar em seus mares, fazer a sesta em suas brisas, contar luzes em seus céus estrelados.
Quer crescer logo para partir, procurar ilhas distantes e perdidas, buscá-las e tomá-las.

3.10.06

Canto de cigarra

O entardecer pinta de lilás as esparsas nuvens que bóiam no céu. O sol arrasta lentidão e recolhe o calor de sobre a terra. O vento voa vôos tímidos, sem vivacidade, cansado de ter soprado tantas folhas e folhagens, tantos troncos e caules, tantos lagos e rios sem conseguir a nada refrescar.
Presa a uma árvore, uma cigarra macho alimenta-se silenciosamente. O frescor que chega com o final do dia traz-lhe maior conforto, fazendo com que o instinto recomece a soprar-lhe a necessidade do acasalamento.
Dentro de casa, o homem olha, sem interesse, a noite escoar vagarosamente sobre o mundo e pensa somente que a qualquer momento a mulher chegará.
Após tantos anos sob a terra, esperando o momento de amadurecer, de aflorar à superfície, de galgar troncos, alimentar-se de seiva e cantar a imperiosa necessidade de se acasalar, o inseto resta imóvel.
Quase plenamente instalada do lado de fora da casa, a escuridão passeia olhos pela alma do homem, inquietando-o com a demora da mulher, maldosamente insinuando-lhe que a noite será de solidão e que o desejo deverá ser recolhido. Então ele movimenta-se impaciente pela casa.
A cigarra não argumenta com a Natureza: solta seu estribilho, inunda o ar com o som de seu canto, espalha seu chamado pela fêmea, agita-se ante o pouco tempo de vida que lhe resta e, sem se mover, canta e canta e canta...
A mulher chega, o homem só lhe diz abraços e mãos espalmadas em suas costas, em seu rosto; e lhe diz beijos, calando-lhe os lábios que explicavam; e passeando a língua pela boca que lhe é cada vez mais oferecida, o homem diz desejos à mulher.
A cigarra arrefece o canto, bate asas e mergulha no escuro em frenético vôo sem rumo.
Choca-se contra a janela do quarto da casa, onde o homem mansamente comunga amor.

5.9.06

O menino, a pedra e o lago

Reflexo do infinito abismo azul sem nuvens, a superfície do lago cobre mansamente toda a água de que também ela é feita. O Sol espreguiça cálido olhar sobre o líquido que ainda há pouco dormia. Na margem, pai e filho estendem olhos pelo corpo aquoso enquanto caminham a passos lentos, trocam algumas palavras, chutam pedras e quebram gravetos com os pés desatentos.
O homem abaixa-se, mexe em algumas pedras, escolhe uma com a face bem lisa, chapeia o pedregulho na superfície da água. O objeto resvala no líquido por duas, três vezes antes de afundar. O menino acha graça da mágica do pai. Nova escolha, novo movimento de rotação, e a pedra caminha aos saltos sobre o lago antes que ele a absorva na líquida eternidade de seu corpo.
O filho se empolga: quer aprender a fazer a mágica do pai.
O homem escolhe um cascalho para a criança, coloca-o em sua pequena mão, ensina ao menino o movimento de braço e mão.
O rapazinho ensaia jogar, olha para o pai, dá um sorriso. “Olha pra frente!”, e ele volta a se concentrar na voz que segue a instruí-lo.
Realiza um, dois movimentos falsos de arremesso, até que no terceiro o pedregulho lhe sai da mãozinha.
A pedra sustém-se no ar sem vento e inicia viagem. O menino prende a respiração à espera do encantamento. O lago vigia, com seus milhares de olhos de água, o percurso do objeto. A pedra distancia-se da criança, da margem, aprofunda vôo. O menino esparrama sobressaltos do coração por todos os seus órgãos. O lago, impassível, segue observando, e diz com o silêncio a inevitabilidade do encontro. A pedra, sem mover as células que não tem, segue o destino que desconhece: cair. O menino é ansiedade em ver quantos pulos seu cascalho dará. O lago contempla o azul acima, relaxa todas as suas líquidas fibras, e espera. E no mesmo segundo de Tempo, a pedra toca, o menino assiste e o lago sente.

11.8.06

Aos peixes que plantei

Dentro de um aquário, os peixes são folhas de árvore sem tronco a se moverem na aragem da água. Vasculham cada milímetro do pequeno espaço em que vivem sem se cansarem com a repetição da paisagem; deslumbram-se com a imobilidade de uma sempre e mesma pedra; nadam, crianças encantadas, por entre o verde perene de plantas artificiais.
Em um canto da sala, dentro das paredes de vidro que faziam meu aquário, plantei uma dessas árvores, feitas de folhas pequenas e coloridas. Gostava de relancear olhos para ver a agitação dos pequenos animais, que pareciam prestes a serem arrancados por vento tempestuoso e constante. Havia prazer em, ao alimentá-los, vê-los vir à tona com a voracidade da última e definitiva refeição. Sentia-me relaxado em ouvir o som da bomba irrigando a água com o ar de que eles necessitavam. Deixar a sala no escuro, iluminada apenas pela luz que acendia o aquário, fazia-me ter a sensação de que o mundo era feito daquela água, daqueles peixes – e alimentava a saudade dos mares que me envolvem.
Essa semana, cheguei em casa, fui alimentar os animais e surpreendi-me: todo o líquido que os sustentava havia-se esvaído por inexplicável rachadura na parede de vidro. Os peixes – todos eles, toda a folhagem multicor de minha árvore sem tronco – repousavam eternidade sobre o leito de pequenas pedras azuis.
Peguei-os, um a um, e os plantei em meu jardim.
Todas as noites, quando a escuridão abraça minha casa e respira dentro de minha sala, acendo a luz do aquário, fico olhando a água estéril em folhas. E pacientemente aguardo a colheita.

3.7.06

Sons de voz escarlate

“A veia desse braço não está muito boa...vamos tentar o outro?”
A enfermeira muda o suporte de lado, pede que o homem apóie o braço e que feche a mão. Aperta-lhe o bíceps com um pedaço de borracha, alisa com as costas do dedo indicador direito a veia que salta.
A mulher esfrega um chumaço de algodão embebido em álcool na pele do homem, espera alguns segundos, aproxima a agulha e prepara-se para injetá-la obliquamente na veia.
O homem não tira os olhos da seringa, fixando atenção à ponta metálica da agulha.
Um leve esforço na mão da mulher, e o homem sente a picada, mantendo os olhos fixos no metal que lhe invade a carne. A enfermeira puxa o êmbolo, enchendo a seringa com o líquido, que apressadamente tinge de vermelho todo o recipiente.
O sangue mal se acomoda e já é transferido para um tubo. Acostumado a gritar velocidade através do corpo do homem, o líquido agora emudece imobilidade. Com as paredes levemente avermelhadas, a seringa é jogada ao lixo.
“Pode abrir a mão...segure esse algodão um pouquinho...isso...só até eu colocar um esparadrapo...pronto...”.
O homem se levanta, guarda no bolso da calça o papel para a retirada do resultado do exame, e parte.
Dentro do tubo, o sangue, que há um minuto era luz líquida a escoar energia, é agora luz condensada a perder seu vital calor. Antes que toda a vitalidade se esvaia, ele contará histórias sobre o homem; dirá sobre saúde ou doença; mostrará despudoradamente as imperfeições que, por ventura, carrega; responderá, com todas as células de seu corpo, às perguntas sobre vida e morte.
E enquanto o calor fenece, esgotando-lhe calmamente as falas finais, o sangue fecha-se em crisálida rubra e guarda, no rubor de seu corpo inerte, segredos de desejos e paixões.

1.6.06

Eu e ela comigo

Seguro, entre as minhas, as mãos dela. Lá fora, a boca informe e fria da noite bafeja penumbra cada vez mais espessa. Peço licença para acender as luzes, vou soltar-lhe as mãos e percebo: não as tenho entre as minhas. Retive-as somente em pensamento. Pareceu-me tão real que juro havê-las sentido frias. Esforcei-me mesmo em aquecê-las. Só agora vejo que comprimia apenas e tão somente minhas próprias mãos. Levanto-me, acendo as luzes. Não me agrada o jorro de claridade a inundar o ambiente. Apago tudo, acendo unicamente um abajur.
Sento-me novamente e noto que, em nenhum momento, ela interrompera sua fala. Ainda assim, impressiona-me o fato de eu ter ouvido tudo o que ela disse. Lembro-me de cada palavra, do raciocínio, das minhas interpelações. Ela segue falando, eu sigo ouvindo, às vezes ela pára de falar, eu emito opinião, ela concorda, discorda, prosseguimos conversando.
Esgueirando-se silenciosamente, o corpo volátil da noite neblinou completamente o mundo. Não me importo: enquanto estiver acesa, a fraca lâmpada do abajur nos mantém a salvo. E nos torna uno. Por isso, permaneço atento ao que ela diz e continuo ondeando pensamento pelos movimentos de seus braços, de sua boca.
De repente, levanto-me, prendo seu rosto entre meus dedos abertos, beijo-lhe levemente os lábios. Espero-lhe a reação. Nada acontece. Tudo é ainda penumbra e a voz de mulher. Lá fora, a noite ressona incansável vigília. Aqui dentro, a penumbra desperta o torpor da escuridão. Então constato que, em realidade, não me levantei, não lhe prendi o rosto, não a beijei. Mas meus lábios me dizem saber os dela.
Não os contradigo: prefiro que permaneçam enganados.

3.5.06

Tantas flores e um sol

“Meus desejos são meus maiores segredos”, pensa o girassol enquanto todo seu rosto se volta para a fonte de luz que jorra do céu limpo. Tanto azul por onde vagar olhos; tanto horizonte para alongar perguntas, empurrar tristezas, descobrir paixões, e ele dirige suas perguntas, tristezas e paixões unicamente ao Sol.
A flor diz amor pintando de amarelo as pétalas; nascente, o Sol diz luz. A flor diz amor esticando o caule a dois, três metros do solo; afastando-se da terra, o Sol diz calor. A flor diz amor agarrando-se ao solo com raiz tão longa quanto o caule; alto, o Sol diz mais calor. A flor diz amor alongando braços de folhas verdes; subindo, o Sol diz ainda mais calor. Ao longo do dia, todo o amor que a flor diz é com os olhos voltados ao Sol, que só sabe dizer calor...calor...e sulcar o céu com quilha incapaz de criar marola.
Quando o céu finda, o Sol se cansa de monologar e se recolhe.
O girassol volta o olhar perdido para o solo e não percebe outros girassóis atrás de si com o mesmo olhar, as mesmas pétalas amarelas, os mesmos caules, raízes e folhas. Todos esperando o ressurgimento da luz para, mais uma vez, silenciosamente dizer amor.
Enquanto esperam, renovam perguntas e tristezas, guardam paixões e pensam “meus desejos são meus maiores segredos”.

22.4.06

Chuva para dois

O dia é uma reta que se inicia após a longa curva da noite. Preparo-me para sair. Abaixo-me para pegar o relógio sobre o criado mudo. Curvo-me para o costumeiro beijo de despedida. Ela se mexe antes que meus lábios lhe toquem o rosto, fazendo-me recuar com receio de acordá-la. Olho-a estendida de bruços sobre a cama e aflora em mim o desejo de despertá-la, para criarmos calma e intensa chuva capaz de inundar o leito, agora, seco. Meus olhos mastigam a silhueta ao longo do lençol que a cobre. O tecido marca-lhe as curvas do corpo, definindo-o perfeitamente. À mostra, apenas o rosto e os ombros, sulcados pelas finas alças de uma camisola. Penetrando na trama do lençol, meu desejo gasta longos segundos soprando-lhe suavemente as costas, roçando-lhe os lábios nos quadris, mordiscando-lhe levemente a pele clara, sussurrando-lhe palavras úmidas, percorrendo, com pontas de dedos, caminhos conhecidos e sempre redescobertos no corpo dela.
Impaciente, o dia me cobra obrigações. Beijo-a levemente. E saio.
À hora do almoço, após conversas triviais, as nuvens da chuva que não criamos pairam sobre minha cabeça, tornando a armar a tempestade prenunciada pela manhã. Meu olhar suga-lhe a boca em demorado beijo, acarinha-lhe o pescoço com as costas das mãos, alisa-lhe os finos pêlos dos braços, contorce-se por entre os seus dedos.
Intolerante, o dia me alerta responsabilidades. Meu desejo recolhe o temporal. E saio.
Ao final da jornada, a curva da noite esconde obrigações e responsabilidades. Então, nossos corpos armam vagas sobre o lençol, nossos desejos invocam as nuvens.
E quando os olhos dela mergulham nos meus e minha mão vence a fraca resistência da primeira alça da camisola, nada mais pode afastar a tempestade.
Mansa e torrencialmente, a chuva cai.

1.3.06

Monólogo da despedida

Não sei porque não saí logo que você entrou. Não sei porque deixei que tocasse meu braço. Não sei porque me sentar num lugar onde tudo o que meus olhos vêem é você. Talvez eu precise passar por isso e te dizer sobre os mundos a me habitar desde sua ausência. Mas não quero ninguém, nem mesmo você, a escutar o que tenho a lhe dizer.
Posso falar baixo. Baixo o suficiente para gritar em pensamento. Você notaria se o calor que falta nesse ambiente jorrasse de meu sussurro? Sei que não pode me ouvir, mas seu rosto costumava se incendiar com a fogueira feita de palavras a sair de meus lábios – e ele se abrasava mesmo que não continuasse a me escutar, apenas por saber o som morno a exalar de minha boca.
Posso falar ainda mais baixo. Receberia seu perdão se soubesse as coisas que falo para você não escutar? Baixo...bem mais baixo....baixinho...até eu mesma não saber de nada e não ouvir coisa alguma. Pois meu problema é não poder parar de falar. Preciso continuar a dizer, mesmo sabendo do perigo quase certo de meter os pés pelas mãos e soltar a palavra capaz de transformar em labaredas inextinguíveis o fogo em que me consumo: amor.
Pronto. Ei-la pensada, sussurrada, liberta em vôo errante por toda a sala, a resvalar na sua indiferença, a esmorecer na frialdade calculada de seus olhos que me evitam. Sinto muito, nada posso fazer para recuperá-la, para trazê-la e guardá-la a salvo de você e de mim. Deixe-a. A qualquer momento ela se cansa, esconde-se embaixo de um móvel até agarrar-se à minha saia, esperando por um descuido meu e assim poder voltar para dentro de mim.
Agora só me resta deixá-lo em paz, sem policiar seu olhar, sem querer que não ouça as coisas que não direi.
Só lhe peço um favor: não me toque mais. Do silêncio que brota de minha voz e dos gritos que eclodem de meu pensamento, eu lhe imploro: não me toque mais. Não traga para minha pele a candura estéril de seus dedos, não desperte com arrepios a alma latente de meu corpo exausto.
Por favor, deixe-me.
E eu lhe prometo nunca mais soltar o amor no meio de nós.

1.2.06

Cachoeira

Por caminho feito de espaço, desde o rochedo do qual se desprende até as pedras que a abriga, cada gota de água é semente de um rio que havia, a esperar o momento de semear-se no rio que haverá.
Cada gota é chuva desprendida de um céu sem nuvens, não alimentará solo algum, não beijará raiz de nenhuma árvore.
Líquido corpo prateado tecido pela liquidez de cada uma de suas partes, a cachoeira se desgarra silenciosa e se arrebenta em volumoso grito que escapa de sua garganta sem boca.
E enquanto a água voa para se tornar cachoeira, o Sol percorre o espaço dos dias; a Lua farta-se de si mesma e mingua-se de cansaço; o cão rói os ossos que lhe pertencem até abandoná-los ocos e vazios de osso e cão; cidades acendem e apagam luzes na luta sem fim contra a escuridão da noite; o céu veste-se e se despe de nuvens e relâmpagos e trovões; amantes se apaixonam e se exaurem na paixão, dando poucas chances ao amor; mães acalentam e alimentam filhos até que se tornem mães a acalentar e alimentar; homens e mulheres garimpam o pão com a bateia emprestada pela vida; muitos homens e mulheres entregam os corpos quando a vida corpórea lhes sussurra estar cansada de viver.
Enquanto isso, a cachoeira segue – antes, durante e depois – sendo simples e completamente cachoeira.

3.1.06

Companheira

Ao longo do dia, ela me visita em horários diversos, mas é presença freqüente. Voa em torno de mim vôos incertos, bafejando suspiros de saudade com o movimento das asas. Pousa às vezes no meu ombro e sussurra frases desconexas impregnadas de paixão. Assusta-se muito facilmente ao menor sinal da presença de outra pessoa. Nesses momentos, ela se aninha em algum lugar que desconheço, mas que não deve ser muito distante. Basta perceber-me novamente só e ela volta a me chamar, bailando a silenciosa música que a alma nunca olvida.
Tão logo tranco a porta, ao retornar para casa no final do dia, encontro-a a me esperar perfumada e faminta de mim. Ela então me acompanha ao banho; divide comigo refeição ligeira; ouve as músicas, que escolho sem lhe pedir opinião; senta-se aos meus pés enquanto bato teclas no computador; passeia olhos e ciúmes pelos livros que leio.
Eu,algumas vezes, me embriago. Ela, sóbria, sempre se embriaga de mim.
À noite, quando parto para cama, ela se desnuda de véus e pudor, rola sobre meu leito, sopra hálitos de bons sono e sonhos, esparrama por todo o aposento o mar encapelado que lhe forma os cabelos.
Antes de o cansaço dar o veredicto final, faço curta oração de agradecimento, apago as luzes. A Solidão então cerra todas as frestas, impedindo toda e qualquer visita da solidão.
Logo ela se aquieta, acomodando-se junto a mim e me envolvendo em um beijo quente e seco.
E enquanto eu durmo, ela vela pelo meu descanso.
Como sempre.