22.4.06

Chuva para dois

O dia é uma reta que se inicia após a longa curva da noite. Preparo-me para sair. Abaixo-me para pegar o relógio sobre o criado mudo. Curvo-me para o costumeiro beijo de despedida. Ela se mexe antes que meus lábios lhe toquem o rosto, fazendo-me recuar com receio de acordá-la. Olho-a estendida de bruços sobre a cama e aflora em mim o desejo de despertá-la, para criarmos calma e intensa chuva capaz de inundar o leito, agora, seco. Meus olhos mastigam a silhueta ao longo do lençol que a cobre. O tecido marca-lhe as curvas do corpo, definindo-o perfeitamente. À mostra, apenas o rosto e os ombros, sulcados pelas finas alças de uma camisola. Penetrando na trama do lençol, meu desejo gasta longos segundos soprando-lhe suavemente as costas, roçando-lhe os lábios nos quadris, mordiscando-lhe levemente a pele clara, sussurrando-lhe palavras úmidas, percorrendo, com pontas de dedos, caminhos conhecidos e sempre redescobertos no corpo dela.
Impaciente, o dia me cobra obrigações. Beijo-a levemente. E saio.
À hora do almoço, após conversas triviais, as nuvens da chuva que não criamos pairam sobre minha cabeça, tornando a armar a tempestade prenunciada pela manhã. Meu olhar suga-lhe a boca em demorado beijo, acarinha-lhe o pescoço com as costas das mãos, alisa-lhe os finos pêlos dos braços, contorce-se por entre os seus dedos.
Intolerante, o dia me alerta responsabilidades. Meu desejo recolhe o temporal. E saio.
Ao final da jornada, a curva da noite esconde obrigações e responsabilidades. Então, nossos corpos armam vagas sobre o lençol, nossos desejos invocam as nuvens.
E quando os olhos dela mergulham nos meus e minha mão vence a fraca resistência da primeira alça da camisola, nada mais pode afastar a tempestade.
Mansa e torrencialmente, a chuva cai.