24.2.05

O ceifador

Ajeita no chão a metade de lata de óleo que lhe serve de fogareiro. Grosseiro corte lateral faz com que o ar entre e o fogo não se apague. Coloca um pouco de álcool no fogão improvisado, risca um fósforo, avivando o líquido derramado. Acomoda a marmita sobre a boca da lata, tira o chapéu, senta-se em um tronco próximo.
A sombra que a árvore proporciona não é lá essas coisas. Desloca o tronco para um local onde ficará mais protegido dos raios do sol.
A enxada, encostada na árvore, realiza seu ritual de silenciosa espera, guardando sua lâmina para o momento em que novamente ferirá na carne da terra, livrando-a das daninhas ervas que dela se alimentam. Mas o solo não se incomoda – sua vida é sustentar raízes, assim como a do céu é sustentar as nuvens, sejam elas de chuvisco ou tempestade.
Envolve a marmita já quente com o pano que a amarrava. Retira a tampa, olha a comida, murmura prece curta e seca, enfia com vontade a colher na refeição com a mesma mão com a qual maneja a enxada.
O talher cava o almoço assim como a ferramenta, a terra. A marmita vai se tornando estéril de alimento tal qual o solo, das ervas.
Come até limpar a vasilha. Guarda a colher dentro da marmita, tampando-a e a amarrando com o pano. Estende um pedaço de plástico no chão. Deita-se, encostando a cabeça no tronco.
Após breve sono, voltará a ceifar, cavando o solo com a ferramenta afiada, alimentando estômago voraz que digerirá o mato a céu aberto.

22.2.05

O lago

As águas do lago eram espreitadas por terra impiedosa. Raramente ele podia estender seu corpo para muito além de seu limite usual – a planície à sua volta o vigiava dia e noite, ano após ano. Algumas árvores serviam ao papel de sentinelas, sentindo, do alto de suas copas, as nuvens que criariam pesada e perigosa chuva. Então, elas usavam o vento que precede a tempestade para forrar o chão com suas folhas. Recebendo o aviso, a terra se retesava toda na seca que a tornava cada vez mais una, cada vez mais terra.
Causava-me desconforto olhar aquela superfície ondulante ser confinada pelo solo, que tinha todo o espaço desejado para esticar sua massa compacta. Vontade de criar meu próprio Estreito de Gibraltar, entrar naquele lago, empurrar a parede de solo para mais e mais longe, deixar as águas crescerem até que suas entranhas se fartassem de si mesmas.
Impossível.
Tirei a camiseta, tirei os tênis, molhei as mãos.
Um vento conspirador soprou as folhagens das árvores, tentou desviar minha atenção.
Caminhei devagar para dentro do lago, inundando o deserto de minha pele e deixando que a água lambesse meu corpo, reconhecendo pelo gosto e pelo cheiro aquele que tantas vezes estivera com ela.
O frescor do líquido apaziguou meu mal-estar.
Então as águas me sussurraram palavras úmidas, encheram meus olhos de líquida visão.
E toda a terra que me oprimia deixou de existir.