30.1.14

Diário da ausência

         O travesseiro está no lugar, ou melhor, os travesseiros estão no lugar: o meu e o teu.
         Ainda de manhã, bem de manhã, tua camisola era o teu corpo despojado a esparramar-se sobre a cama. Agora, não mais. Sumiu, assim como sumiram teus chinelos, tua saia sobre a poltrona do quarto. Tudo ordeiramente colocado em seus lugares - gavetas e armários a minha volta, metidos num silêncio de segredos, a ocultar-me onde exatamente cada coisa.
         Mas você está por aqui.
         Resta ainda teu perfume no banheiro, sorrateiro o bastante para não se deixar dobrar e meter-se em vincos dentro de alguma dessas gavetas mudas. Mas há bastante ar - apesar de, neste momento, me parecer escasso - para ele andar e mover-se na morosa fluidez de um animal tímido. Em pouco tempo, o teu perfume terá se dissolvido num desapego nômade de quem não percebe ser o ar sempre igual - e que não lhe custaria durar-se um pouco mais no banheiro.
         Daqui a pouco vou sair. Não sei se vou correr, se caminhar. Vou sair. Tua ausência é um cão triste a farejar meus passos aqui dentro, a derramar-me olhos úmidos enquanto me movimento por toda a ordem que reina na casa.
         Quando eu voltar, provavelmente será noite. Espero que o cão tenha achado um canto ou um espaço em alguma gaveta - apesar de ter a certeza de que, durante a noite, seu uivo mudo sufocará até mesmo a gritaria das luzes, que deixarei acesas.
         Ao amanhecer, o teu travesseiro estará no mesmo lugar de agora; tuas roupas, obedientes nas gavetas e armários; a casa, organizada e limpa.
         E assim será.
         Até que, por Deus, tanta ordem acabe.

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