O branco monte de grãos mais uma vez se despe de água.
Sua sina tem sido vestir-se de água e dela se despir. Cresceram e tomaram forma quando a corrente líquida escorria incessante pelo vale e os cobria com renovado frescor aquático. Seus dias e noites eram líquidos, e a luz tinha de se molhar antes que a recebessem.
Um dia, tudo estava liquidamente calmo em um instante. No instante seguinte, era a colheita – e o que havia era a sensação desconhecida de ar e vento e um sol seco a lhes arrancar a úmida vitalidade.
Depois veio a seca, uma longa e única seca. Durante dias e noites, atravessaram o deserto sem areia da estiagem sem nuvens e sem céu. Então as mãos sempre famintas de um cozinheiro romperam a embalagem que os prendia e os libertaram, os grãos. Têm sempre fome as mãos de um cozinheiro – corpos frenéticos de braços, boca e dentes feitos de dedos.
As mãos libertaram os grãos da árida latência, jogando-os no líquido frescor da água corrente, despertando-lhes na memória o vale que nunca mais.
Abraçados, apertados e mastigados muitas vezes pelos dedos das mãos, os grãos renovaram-se em água.
Agora, o monte branco é corpo único e repousa. De suas veias, formadas pelos espaços criados no contato entre um e outro grão, esvai-se todo o insípido sangue feito de água.
Ali ao lado, a alquimia culinária do cozinheiro invoca o fogo – e este escorre, em lambidas de língua azulada, pelo fundo da panela.
Logo o cozinheiro encherá de calor a alva pele dura dos grãos, sussurrará monossílabos de sal, irá cantarolar notas curtas de cebola e alho antes de criar o dilúvio final.
Imersos em água e calor, os grãos pouco a pouco se esquecerão de si mesmos para se incharem com os desejos das mãos famélicas do cozinheiro e se vestirem de arroz.
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