A claridade calada das tardes de domingo invade a sala enquanto o tempo se esgueira preguiçoso pelo mundo, fazendo com que as horas sejam o lento sobrepor de pesados corpos de minutos.
O homem salpica o olhar pelas páginas de um jornal, a mulher finge atenção ao programa na televisão, mas o pensamento está longe - tão longe que se encontra em lugar algum: os pensamentos pulam desenfreados, deixando-a na letargia calma dos alienados.
A lembrança de algo acontecido com sua mãe faz a mulher soltar uma frase, relembrando ao homem a história contada.
Sem tirar os olhos do jornal, ele diz uma palavra, apenas uma palavra a expressar sua opinião sobre o assunto - e que a prevenção mantivera até então escondida no leito seco onde opiniões indesejadas ficam à mingua, até se dissolverem pela ação meticulosa da prudência.
A mulher saltou os olhos na direção do homem, mas ficou quieta. Ainda olhando o jornal, o homem sentiu a traição do automatismo na resposta, mas como a mulher nada disse, ele também ficou quieto.
A palavra solta pela sala, vasculhando móveis, tateando paredes, espreitando-se insidiosa nos ouvidos da mulher, cria um nevoeiro de discórdia que não ofusca a claridade da tarde, mas traz a quase palpável penumbra da desarmonia.
Ela agora tem algo em que fixar o pensamento, a televisão é somente uma sucessão de sons e imagens. Ele tem algo em que ficar atento, aguardando o desdobramento, o jornal é apenas um apêndice.
E o nevoeiro isola um do outro, oprimindo o ar, deixando intacta unicamente a aparência de normalidade.
À noite, a mulher, sem fome, bafeja o ambiente ao dizer ao homem que vai lhe preparar um lanche.
Ele lhe pergunta se ela não quer um pedaço. Sem o olhar, ela diz com a cabeça que não.
O homem deixa metade do lanche para a mulher, mas nada fala - apenas o deixa, como se metade lhe fosse suficiente.
Quando, após alguns segundos, ela toca no meio lanche, fere de morte o nevoeiro.
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