21.12.05

Meu Natal

Durante o mês de dezembro, quanto mais se aproxima o dia vinte e cinco, mais aumenta minha inquietação e desconforto. Nunca entendi o porquê desse sentimento enviesado e contra a corrente geral. Louvo o esforço da maioria, mas nessa época continuo a ser o mesmo homem crente e descrente, o mesmo pai e filho, sigo sendo amado e amante.
Concordo com o fato de ser essa uma data especial, pois os homens a fazem especial a partir do momento que assim o crêem. E tenho minhas crenças nos motivos que tornam o Natal uma data não igual.
Para mim, Natal era o aroma do frango assado por minha avó. Era o gosto da farofa feita uma única vez no ano para rechear a ave. Eram os movimentos da mulher pela cozinha em um balé sem audiência.
Natal significa céu sempre renovado de nuvens e chuvas. Assisto à sucessão de horizontes carregados de neblina e fertilidade. É contemplação do brotar de folhagens verdes ávidas por terra e espaço.
Natal é inundação do ar pela música dos sinos, a cadenciar frases e choros cavados de metais ancestrais.
São ainda orações espargidas por bocas que há muito se encontravam áridas. Agradecimentos, lamentos e pedidos a permear almas desavisadas, estremunhadas pelo esforço não habitual.
Natal são crianças a correr olhos pelas ruas cheias de presentes, enquanto a lembrança busca os sapatos, que não têm, vazios dos brinquedos que não ganharam.
Natal é mãe a dar eternamente à luz o filho. E o menino, deitado em simples manjedoura, para sempre cercado de vacas, cabras e mulas, eleva eternamente as mãozinhas ao céu com a certeza de que, no próximo vinte e cinco de dezembro, mais uma vez será Natal.

1.11.05

Meu mar

Todas as noites, eu escancarava a janela do meu quarto para deixar entrar o mar. O som das vagas escorregava pelo meu aposento, acomodava-se ao lado do ruído das teclas do computador, fazia companhia ao volume baixo do toca-cd.
Eu me deitava e alongava o sono, escutando gemidos de ondas quebrarem na praia que minha casa não possui.
O mar vagava pelo correr sem tropeços do vento nas folhas dos pés de eucalipto plantados no terreno ao lado.
O vento jogava as folhagens de lado a outro, escorria desembestado nas ramagens verdes – e todas as árvores gritavam o lamento que me era idêntico aos gritos das ondas do mar.
Eu batizara a escuridão da noite de Isla Negra, e acreditava que em seu corpo ausente de luz, ela escondia o mar que eu ouvia e não tinha. E assim como para Neruda, o mar era grande demais e estava colocado em minha janela.
O mar que eu ouvia e não tinha.
Ausente por alguns dias, retorno e chego quando o sol moveu seu furor para outras paragens. Abro a janela, escuto – e não ouço. Vigio o escuro, faço perguntas a minha Isla e só recebo silêncio.
Alguém levou meu mar embora. Cortaram-no e o tornaram lenha. Transmutaram em fogo, o meu mar.
Ruidosamente silenciosa, a noite já não entra pela janela do meu quarto, abafada por aquela que sai dele – que tem o tamanho e o sal dos mares.

5.10.05

A fragilidade da linha que amarra

Depois de dez minutos de descanso na terceira parada, a mulher se decide a não mais interromper sua marcha, a não mais deixar de arrastar o carrinho cheio de papelão até que atinja a parte plana da rua.
O corpo inclinado para frente, apenas as pontas dos pés apoiadas no chão, ela faz esforço enorme para conseguir vencer os metros que ainda faltam, cruzar a avenida e finalmente não precisar fazer tanta força para colocar em movimento a pequena carroça que arrasta todos os dias.
Não gosta de enfrentar ruas com subida, mas não pode se dar ao luxo de escolher o caminho pelo qual colherá seu sustento e o de seus filhos.
Começa a atravessar a avenida e o semáforo fecha. Tem tempo somente de frear o veículo com a vontade de todos os músculos, voltar poucos passos, controlar o carrinho para que não embale rua abaixo, manobrando-o e encostando-o no meio fio. As ofensas, a mulher não as ouve, ajudada pelo sol forte que lhe torra as têmporas e a faz pensar apenas na preservação de sua carga preciosa.
Quando o semáforo abre, o arranque para colocar o carrinho em movimento arrebenta a frágil amarração feita pela mulher. E metade da carga colhida esparrama-se no chão. Assim, parte da rua e da calçada ficam cobertas pelas três contas de luz atrasadas; alagadas pelo fio de água que precisa ser pago; manchadas pelo óleo barato que cozinharia um pouco de arroz; alimentadas pelo leite que a mulher precisa dar aos filhos.
De manhã, ao sair, deixou as quatro crianças aninhadas em miserável casa erguida num ramo sem terra de uma rua batida.
Durante o dia, enquanto esperam a mãe, os meninos correm em vôo baixo pelos terrenos do bairro, elevando sonhos às alturas das pipas que sempre lhes pedem linha...linha...linha...

5.9.05

Pesadelo entre sonhos

-- Durmam, meninos...durmam...
A noite mal chegou. Há poucas luzes acesas do lado de fora da casa. O rumor de pessoas pela calçada começa agora a aumentar. São poucos, ainda assim, os passos tropeçados em doses de cachaça barata, de homens-cometa que giram órbita incerta, arrastando como cauda o cheiro insuportável de cigarro e bebida.
-- Durmam, meninos...durmam...
A mulher se aproxima dos filhos para ter certeza de que eles já não mais estão despertos. Passa a mão na frente de seus olhos, ausculta suas respirações pesadas e tranqüiliza-se com a certeza: os três só despertarão amanhã ou se um barulho muito grande lhes perturbar o sono.
-- Durmam, meninos...durmam...
Em uma linha de náilon que atravessa o pequeno aposento, dividindo-o, ela pendura um lençol que lhe serve de cortina – na escuridão onde dormem os meninos, sonhos; na penumbra de uma lâmpada de abajur, a vigília em pesadelo.
Ela prende os cabelos com um elástico, joga um pouco de água no rosto, encharca a boca de batom vermelho, carrega a alma de coragem e necessidade. E se dirige para a porta de entrada da casa.
-- Durmam, meninos...durmam...
Daqui a pouco algum cliente terá de chegar, povoando o quarto de interjeições abafadas, apertando-lhe o corpo com mãos sôfregas, esparramando afagos brutos, mordendo palavras indizíveis. E, ao sair, o homem deixará, sobre o criado mudo, a paga de um prazer não ofertado, e levará os espasmos de um prazer imerecido.
Durmam, meninos...durmam...que sobre o criado mudo repousa, na penumbra, o leite que os alimentará amanhã, até a próxima noite de sonhos e pesadelo.

1.8.05

Plenitude

Um par de brincos repousa sobre o criado mudo. A ausência da nudez dela cria vasta planície na cama. Recolhido a uma beirada do leito, habito a estreiteza do vale que me cabe. E de lá, contemplo o par de brincos.
Apóio-me sobre os cotovelos, quero melhor ver as jóias. Tenho desejo de pegá-las. Ameaço tomá-las em minhas mãos e enxergo o lençol amassado pelo corpo dela, o travesseiro ainda marcado por sua cabeça.
Com a ponta dos dedos, aliso as feridas que ela deixou no tecido; tateio os suspiros deixados impressos no travesseiro; recolho as voltas de suas coxas, o contorno de seus quadris sinalizados em rotas que percorremos juntos durante a noite. É longo o caminho que me separa do par de brincos. Longo e intransponível com a presença vazia dela.
Ao fechar a porta após sair, ela arrastou consigo o ar que havia no quarto, secou a enchente de luz que inundava o aposento, plantou no meu corpo uma semente que se torna frondoso desejo quando estou longe dela – e todo o meu anseio é que ela faça a colheita.
Prostro-me sobre o leito onde, ainda ontem, havia a mulher.
Aspiro o perfume incensado nas fibras do lençol.
Perfume que demarca onde eu termino e onde ela começa, plena, para criar nós.

8.7.05

O vento

Sem que nada se espere, ele se vê em movimento: eis o vento.
Criado, coisa alguma pode detê-lo. E a vida que possui só sabe fluir pelos espaços de que dispõe – a infinitude de horizontes nunca alcançados, o limite nunca atingido do céu.
Para o vento, prazer é rolar por sobre vegetação verde fresca, sabê-la com enorme língua que roça cada folha, cada ramo, que se fere em cada caule e tronco áspero e, ainda assim, jamais fechar a boca sem dentes que grita sem parar.
Para o vento, alegria é prender por entre os braços descarnados todos os morros e colinas, em abraço que não sufoca, em carinho que não se mede. Alegria é subir montanhas e perder-se, sem se preocupar com o caminho de volta – é não se preocupar nem mesmo com o retorno. Se não voltar, ele tem a tranqüilidade de não haver quem o espera.
Para o vento, oração é poder caminhar sobre as águas. Imitar os santos e ser puro e não macular rios nem mares. Comungar é alisar as superfícies líquidas, levantando-lhes cristas e ondas para, em seguida, depositá-las no mesmo leito que as abriga.
Para o vento, luz é espada a lhe perfurar o corpo macio.
E por todos os poros, o vento esvai-se incessantemente em sangue feito de ar.
Sem jamais morrer.

10.6.05

O homem e a ave

Sentado na areia, olhando a vastidão de mar avançar em sua direção, em suaves marolas, o homem segura um sanduíche, retém entre as pernas um copo de refrigerante. A água rola sobre si mesma e entrega-se inteira a cada grão da praia. Os olhos dele assistem ao entrelaçamento, e o homem, ainda que pecador, pensa uma bênção.
Morde o lanche, bebe do copo, colocando-o de volta ao chão. Quando ergue os olhos, três aves pousaram a sua frente. Uma delas avança, receosa, jogando a cabeça de lado a outro. As outras duas permanecem paradas. Ele pega um pedaço do pão, lançando-o ao ar. O pássaro mais próximo não deixa o alimento atingir o solo, os demais não têm tempo de disputar o presente.
Sorri da graciosidade do animal. Corta outro pedaço do lanche. O grito agudo das aves faz com que mais quatro pousem perto do seu guarda-sol. Algumas tentam se aproximar e são rechaçadas com bicadas e com a voz ameaçadora daquela que foi a primeira a receber o alimento da mão do homem.
Joga o naco mais alto, o vento forte o desvia para fora do alcance da ave-primeira. Ainda assim, ela fatia o ar com movimento ligeiro de asas e prende a oferenda entre o bico. Volta ao solo mais próxima dele, mais agressiva contra as demais, que agora já passam de quinze.
Os olhos da ave-primeira alternam-se nos olhos do homem. Com pequenos passos, ela chega cada vez mais perto, abaixa a cabeça em um misto de súplica e reverência, abre as asas, exibe as penas, grita ao sol, ao vento, às concorrentes: sou ave-primeira do homem-único; tudo o que ele jogar ao céu eu pegarei; e pousarei cada vez mais junto dele, cada vez mais abrigada pelo seu guarda-sol, cada vez mais aninhada na sombra e calor de meu homem-único.
Ele termina o lanche, arremessa o último pedaço ao bico preciso e companheiro da ave-primeira. Os outros pássaros, aos poucos, desaparecem. Restam o homem e sua ave. Ela não mais avança, fica parada mexendo o pescoço, medindo as atitudes dele.
A poucos metros dali, um pai abre o lanche do filho.
A ave-primeira não mais reconhece seus gritos ainda ecoando nas marolas, não hesita em abrir as asas ao mesmo tempo em que a água, mais uma vez, abraça e aperta os grãos de areia quente.
E parte.

20.5.05

Meu solo

Meu solo, eu o quero líquido. Nele espalharei as sementes das palavras azuis que irão compor todos os textos que escreverei. As palavras descerão às profundezas de minha terra aquosa, germinarão em si mesmas suas próprias mensagens. Depois, retornarão à superfície para serem pescadas pela fina malha da inspiração. Feita a colheita, não me alimentarei de nenhuma delas – e ficarei saciado.
Quero líquido o meu solo. Nele não haverá limite entre minha terra aquática e o céu. Nada farei para separá-los. Balançarei dia e noite sem conhecer o limiar entre um e outro. Viverei cercado pelo azul e por sóis e por nuvens e por estrelas. Os relâmpagos e raios, aninhados nas tempestades, eclodirão sobre minha cabeça e dentro do ventre móvel do terreno líquido que me abrigará. Para selar a comunhão dos dois mundos, a chuva. E sabendo-a, quero viver e partir, desconhecendo se ela tem origem no céu ou se ele é seu destino.
Líquido, assim é como quero meu solo. Nele abrigarei meus amores e, enquanto meu solo nos balançar, eles serão amados. Nele plantarei minha morada: um espaço onde eu possa repousar meu corpo quando for preciso repousá-lo.
E quando o Tempo me pedir um repouso com ares de eternidade, peço que, apenas nessa única vez, abram um sulco e firam a terra marinha. E que eu seja depositado rapidamente na ferida aberta – meu solo líquido curará depressa o ferimento, não deixando sequer vestígios da mácula.
Então, líquido como meu solo, estarei disperso por todo o mundo que nunca foi meu.
E feliz.

1.4.05

Ausência cheia

A mulher senta-se em um dos bancos da praça, aperta um joelho ao outro, inclina ligeiramente as pernas, coloca a bolsa no colo, abraçando-a.
Algumas crianças correm em redor dos jardins, mães dividem o tempo entre os filhos e as conversas com outras mães, um homem descansa sua solidão embaixo da sombra de uma árvore. Ela olha todo o movimento sem prestar muita atenção. Procura por ele que, como sempre, deve vir de mansinho e assustá-la. Não quer deixá-lo perceber que o viu chegar – adora a expressão dele quando ela contrai o corpo e solta um “ai que susto!”
As mãos se esfregam uma contra a outra, apertam a alça da bolsa, mantém os joelhos unidos. De tempos em tempos, endireita o corpo, eleva a cabeça, girando-a despretensiosamente a fim de vigiar a praça.
Abre a bolsa, retira um estojo de maquiagem, retoca o batom. Aproveita o espelho do estojo para ver se ele chega pelo outro lado da praça.
Dedos longos de um vento frio alisam a face da mulher, enxugando o suor que ainda não se podia ver. Ela oferece o pescoço, cerra os olhos e suspira pelo ligeiro prazer que sente.
O vento sopra um pouco mais forte; mexe com delicadeza nos cabelos da moça; levanta folhas presas em um sono sem tempo, depositando algumas aos pés da mulher; mistura aromas de flores, de terra, de grama, criando incenso único que purifica a ansiedade da moça.
Todo o corpo da mulher é espera. Tudo o que sente tem o nome do homem que vai chegar, tem o som de sua voz a lamber-lhe os ouvidos, tem a força de suas mãos a apertar-lhe os braços, a abraçar-lhe a cintura.
Enquanto o homem não chega, o vento segue envolvendo-lhe o corpo, beijando-lhe os lábios com a fluidez de lábios sem carne, sussurrando-lhe o amor, que alimentará ainda depois de o amado chegar.

8.3.05

Os barcos sabem esperar

Atracado.
O espaço entre o veleiro e o cais nunca se mantém fixo. As bóias de defensa se chocam contra a murada do cais e poupam a carne do barco. A embarcação nada diz, de nada discorda, com nada concorda.
Atracado.
A maré oscila; o mar estica os milhares de tentáculos de que é feito e carrega lo veliero para cima; o mar retrai cada célula de sua pele líquida e o puxa para baixo.
Atracado.
As cordas de proa e de popa que prendem le bateau a voile a terra se revezam na função de se estender e de se recolher – tanto uma como a outra não se importariam em se romper, partir seus corpos, sangrar sem derramar uma gota para que o barco, livre, partisse.
Atracado.
Nas ruas próximas, the sailboat assiste ao movimento dos carros subindo e descendo ladeiras, gritando abusos com o ronco de estridentes motores. Quieto, ele nada diz. A boca com que fala são as velas infladas pelo vento – e, em verdade, é este que esparrama palavras pelos caminhos do mar.
Atracado.
O veleiro enxerga no horizonte o fim do limite sem fim dos mares; ele conhece as palavras de todos os idiomas, reconhecendo-se em cada uma delas. No silêncio que reina em si, na quietude resignada que envolve cada pedaço de seu corpo duplo (o físico, feito de matéria; o etéreo, feito da essência das águas) existe a paciente espera pela libertação.
E eu, atracado, assisto a toda a sua calma, contemplo toda a sua mansidão.
Fico torcendo para que a quietude também envolva meu corpo duplo. E peço para ter a mesma força e aguardar pacientemente a libertação.

3.3.05

O inocente

Atravessa a rua e ganha um enorme terreno vazio para correr seu desespero sem causa. Nas redondezas, todos o conhecem, e não há espanto com os rompantes que às vezes tomam conta do homem, que passa o dia a caminhar de lado a outro, sem rumo, sem destino, sem companhia – ele e o mundo que cabe debaixo das solas de seus sapatos puídos.
Há um minuto, tudo estava calmo, o sol não lhe ardia a fronte, o vento não lhe soprava disparates, as pessoas passavam por ele e nada mais eram que vultos.
Agora, diante do campo coberto com vegetação rasteira e densa, a chuva seca torna a ensopar-lhe o corpo, a mesma descarga elétrica, mais uma vez, percorre-lhe a espinha de cima a baixo, de novo as luzes acendem e se apagam em seus olhos arregalados – e o homem corre pisando o mato com ferocidade, as mãos fechadas, o semblante retorcido na dor que o corpo não sente, dor nascida na alma, criada e alimentada nas cavernas mal iluminadas do espírito.
Corre cerca de vinte metros, pára, olha em torno de si procurando o que nem mesmo ele conhece, ameaça soltar um grito, puxa com força a camisa, mas não quer arrancá-la do corpo. As pessoas continuam a passar e a não vê-lo. Ele continua a ver ninguém, segue encharcado pela chuva, sentindo a descarga, enxergando as luzes.
Logo tudo passará.
Ele voltará a cruzar com as pessoas e nelas ainda não encontrar seu semelhante; voltará a pegar uma folha seca no chão e dela retirar a terra que lhe esconde a folha que é; voltará a olhar a claridade do sol e nela enxergar apenas o sol; voltará a admirar o verde do mato e nele sentir cheiro e gosto de mato verde; voltará a ouvir o vento soprar-lhe nos ouvidos frase única e bastante: vento...vento...vento...
E, sob seus pés, continuarão a caber todos os mundos que cabem sob os pés dos insanos.

24.2.05

O ceifador

Ajeita no chão a metade de lata de óleo que lhe serve de fogareiro. Grosseiro corte lateral faz com que o ar entre e o fogo não se apague. Coloca um pouco de álcool no fogão improvisado, risca um fósforo, avivando o líquido derramado. Acomoda a marmita sobre a boca da lata, tira o chapéu, senta-se em um tronco próximo.
A sombra que a árvore proporciona não é lá essas coisas. Desloca o tronco para um local onde ficará mais protegido dos raios do sol.
A enxada, encostada na árvore, realiza seu ritual de silenciosa espera, guardando sua lâmina para o momento em que novamente ferirá na carne da terra, livrando-a das daninhas ervas que dela se alimentam. Mas o solo não se incomoda – sua vida é sustentar raízes, assim como a do céu é sustentar as nuvens, sejam elas de chuvisco ou tempestade.
Envolve a marmita já quente com o pano que a amarrava. Retira a tampa, olha a comida, murmura prece curta e seca, enfia com vontade a colher na refeição com a mesma mão com a qual maneja a enxada.
O talher cava o almoço assim como a ferramenta, a terra. A marmita vai se tornando estéril de alimento tal qual o solo, das ervas.
Come até limpar a vasilha. Guarda a colher dentro da marmita, tampando-a e a amarrando com o pano. Estende um pedaço de plástico no chão. Deita-se, encostando a cabeça no tronco.
Após breve sono, voltará a ceifar, cavando o solo com a ferramenta afiada, alimentando estômago voraz que digerirá o mato a céu aberto.

22.2.05

O lago

As águas do lago eram espreitadas por terra impiedosa. Raramente ele podia estender seu corpo para muito além de seu limite usual – a planície à sua volta o vigiava dia e noite, ano após ano. Algumas árvores serviam ao papel de sentinelas, sentindo, do alto de suas copas, as nuvens que criariam pesada e perigosa chuva. Então, elas usavam o vento que precede a tempestade para forrar o chão com suas folhas. Recebendo o aviso, a terra se retesava toda na seca que a tornava cada vez mais una, cada vez mais terra.
Causava-me desconforto olhar aquela superfície ondulante ser confinada pelo solo, que tinha todo o espaço desejado para esticar sua massa compacta. Vontade de criar meu próprio Estreito de Gibraltar, entrar naquele lago, empurrar a parede de solo para mais e mais longe, deixar as águas crescerem até que suas entranhas se fartassem de si mesmas.
Impossível.
Tirei a camiseta, tirei os tênis, molhei as mãos.
Um vento conspirador soprou as folhagens das árvores, tentou desviar minha atenção.
Caminhei devagar para dentro do lago, inundando o deserto de minha pele e deixando que a água lambesse meu corpo, reconhecendo pelo gosto e pelo cheiro aquele que tantas vezes estivera com ela.
O frescor do líquido apaziguou meu mal-estar.
Então as águas me sussurraram palavras úmidas, encheram meus olhos de líquida visão.
E toda a terra que me oprimia deixou de existir.