Nada foi deixado para trás.
Deixa-se aquilo que, num relance de olhar, é visto e as mãos não se despertam na vontade de pegar. Um quadro enorme dos avós, uma maço de cartas amarrado com fita de cetim, uma coleção de CDs há muito guardando somente a latência da música, alguns livros mantido em posição de sentido, numa ordem unida silenciosa e onipresente.
Tudo foi ostensivamente abandonado.
Começou quando nuvens carregadas escureceram o dia com a cor da tempestade. O dia não se faz noite, cobre-se com negra colcha de nuvens, perfuma-se com o hálito cada vez mais úmido do vento, até se banhar na chuva que ele mesmo gestou.
E a chuva é muita: uma caudalosa sinfonia líquida regida pelos invisíveis dedos de um maestro incapaz de lhe determinar o fim.
Da janela, a mulher olha desatenta os pingos repetirem o mesmo discurso céu-terra, criando um hipnótico mantra, alimentado pelo som da água a escorrer incessantemente.
Até que um barulho mais forte a desperta, ela olha a ladeira acima de sua casa e vê uma massa de terra intrometer-se no discurso da chuva com um xingatório feito de lama, escombros de outras casas, troncos de árvores apavorados a rodar desconexos, tentando com os galhos agarrarem a salvação de uma encosta.
Uma palpitação instintiva toma conta da mulher. Ela abandona a janela aberta – desmesurada boca faminta, prestes a se empanturrar de terra -, desabala-se esquecida do que seja respiração, com as palavras mutiladas em soluços de aflição, sai correndo para a rua em atropelos de sandália, agarrada ao filho de três anos.
Não, nada foi deixado para trás.
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