16.12.10

A fala delicada e fresca da tempestade

A sombra, que ora lhe caminha à frente ora a persegue resignada, é cria da luz dos postes da rua. Ela pisa, olhando a calçada, mas não se preocupa com a sombra.
Os sapatos mastigam o caminho de todas as noites, digerindo em passos o chão irregular das calçadas. Um úmido cheiro de chuva cavalga no vento e lhe invade as narinas, numa fala delicada e fresca de uma distante tempestade.
Ela olha o céu à procura da ausência de estrelas ou da languidez assustada do flash de um relâmpago. Tudo calmo - apenas o ruído normal de alguns carros. Ainda assim, ela passa a caminhar mais apressada.
Um vento interior, há dias a lhe varrer a mente em rajadas inesperadas, volta a soprar a brisa de um perigoso desconforto. A mulher sabe que, se permitir, essa brisa se alimentará de pensamentos brotados às pencas, numa colheita incessante, até se transformar em borrasca a lhe inundar a alma de angústia.
Tenta se distrair, desvia o olhar para os carros, para as pessoas que também caminham, ameaça cantarolar uma música qualquer, que solta-se apenas como murmúrios desconexos.
Falta pouco para chegar em casa e encontrar o refúgio na inundação de todas as luzes que deixará acesas, na televisão com a enchente de outros assuntos e ideias - e esperar que o cansaço de todo o dia seja a trama da veste que lentamente se lhe apega ao corpo e a leva à salvação definitiva do sono.
O vento interior sopra-lhe inesperadamente a imagem da escuridão da casa a esperá-la, do vazio dos cômodos envoltos num silêncio negro, de uma pegajosa solidão que a mulher alimenta na vida e que agora lhe parece uma incômoda companhia.
A mulher afasta o perigo desse pensamento com a afirmação a si mesma de que isso foi sempre o principal que ela quis.
Solta o ar pela boca com força por duas, três vezes, tentando expelir o desconforto a lhe nascer no estômago.
Coloca a chave no tambor, destranca a porta, gira a maçaneta.
E no momento em que lança o corpo à frente, o vento toma-lhe a alma e a desorienta, ao lhe insuflar o desejo de ouvir uma voz que a esperasse:
- É você?

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