3.11.11

Estátuas

         Compadeço-me da penúria da vida das estátuas - homens moldados a cobre ou pedra, filhos nascidos já órfãos, gerados e gestados na lentidão de um útero feito de dedos e cinzel.
         Compadeço-me com a espera permanente de seus dias e noites: o que mais podem alcançar senão a vida perenemente suspensa numa respiração de fôlego único?
         Basta-me olhá-las nos olhos, crispados no espanto de se acharem ocos, para sabê-las tristes.
         As orelhas prontas a todos os sons, que não ouvem e que apenas ricocheteiam na dureza de seus ouvidos, reverberando, na massa compacta de seus cérebros, o ininteligível mundo que as rodeia.
         Apiedo-me com a perpétua posição a que são condenadas: o desejo de um movimento traído à socapa pela vontade fria do escultor.
         Imagino-lhes a força descomunal ao tentarem se erguer, ou sentar-se, ou girar sobre os calcanhares, que às vezes lhes faltam. Também essa espera a lhes preencher dias e noites: o instante em que a rigidez se descuidará e o vento as moldará num sopro despretensioso.
         As bocas, seladas num mutismo de censura, pregam um discurso sibilado pelo ar que lhes esfrega as faces.
         Os estômagos congelados sofrem de saciedade - sensação estranha a quem nunca sentiu fome.
         No início, o tempo lhes passeia nos corpos fumos do incenso de todas as eras e não lhes consegue impregnar o perfume da maturidade. Então, ele as abraça com a névoa do desgaste, elas resistem. Por fim, o tempo tenta afogá-las no caudaloso rio da decrepitude. Vencido, o tempo delas se cansa e as esquece, deixando-as entregues à terra impiedosa, que aos vivos e mortos cobre.
         Entristece-me pensar que um dia, redescontadas por humanas mãos, desenterradas e despidas do peso de muitos e de todos os anos, continuarão ainda com os olhos crispados de espanto.
         E a pedir, numa voz muda de agonia, que o tempo tenha piedade, e volte a se lembrar delas.

15.9.11

Sombra

Ontem, ficou nublado o dia todo.
Algumas nuvens ainda tentaram sufocar o céu durante a madrugada. Desistiram, incapazes de resistir à tenacidade do vento - uma manada de ar sem controle a descampar-se pela noite.
Restam, agora, alguns fiapos a criarem brancas cicatrizes no firmamento que pouco a pouco se torna azul.
O sol é fruto incandescente a amadurecer sementes de luz. Lentamente, ele as semeia, e é impossível perceber a rápida gestação dessas sementes eclodir uma explosão de claridade e calor.
Uma àrvore desperta para mais um dia, atenta à paisagem que não muda, mas que ainda assim não a cansa. Sente suas raízes mastigarem o solo numa ruminação de fome e estabilidade. Sente a frustrada revoada de suas folhas, contidas pela cumplicidade alongada dos galhos.
Tão logo o sol inunda a àrvore com luz e calor, nasce, sobre o solo falhado de grama e terra, a sombra.
A sombra já desperta consciente de si, senhora do terreno sobre o qual se estende, altiva detentora de uma árvore que lhe nasce ao pé, protegendo-a do sol.
Não sabe de onde lhe brota a vontade, mas tremelica suas extremidades num frenesi irrefreável. Olha o céu preso a uma monotonia azul, que lhe é agradável - ao perceber uma nuvem, o instinto a alerta para a possibilidade de perigo. Mas é um perigo que não a machuca e contra o qual não há como lutar.
A sombra não sabe que ontem o dia foi nublado, não sabe o que é hoje, nada conhece além do azul sobre si, a àrvore ao seu pé, sua fina pele escura e fresca alongando-se sobre a terra e uns soluços de grama.
À medida que o sol cresce ameaça sobre a àrvore, um sono ancestral a invade, fazendo-a recolher-se e recolher-se e recolher-se...
Pode ser que amanhã o sol não venha, pode ser que demore uma semana para vir, pode ser que venha a falhar, atrás do peso etéreo de uma nuvem - não importa.
Uma sombra vive a julgar-se perseguida pelo sol, presa na crença da imortalidade de sua pele fina e fresca.

22.8.11

Fazes-me falta

Noite. A escuridão do céu tenta esconder pontos que gritam luz. Atrás de alguma montanha despontada no horizonte invisível, a lua não ilumina as nuvens que não existem. Procuro. Na imensidão de trevas a moldar o firmamento, vejo uma estrela. Procuro e procuro. Vejo a luz de mais uma e de outra. Procuro e procuro e procuro. Ante meus olhos, luzes espocam, inundando minha retina de estrelas. E dentre todas, a falta.
Saudade é um céu vestido de estrelas, menos uma.
Manhã. O vento sopra leve, joga displicente uma folha para além, carrega-a de volta, empurra-a para mais além. Na praia, os grãos de areia agarram-se uns aos outros, resistem ao vento. Contrafeito, ele aumenta sua força. Nenhum grão se move. O vento infla o peito, retesa braços, urra potência e decisão. Alguns grãos são afastados dos outros, saem do alcance da língua do mar. Desesperadas, as águas esticam dedos, alongam abraços, choram líquido lamento.
Saudade é maré vazante, em que o mar contempla areia que só salgará novamente quando se fizer mais água.
Tarde. Ligo o rádio. As notas das músicas escorregam em meus ouvidos, buscam os seus para inundar, e acabam por se afogar no seco ar que seu vazio cria. Sento-me à mesa. Sua cadeira vazia é presença a escolher o prato. Terminado o almoço, acelero a moto. A ausência de suas mãos em meu peito é abraço a apertá-lo em cada curva. O automatismo do trabalho carrega meu corpo enquanto minha mente se aloja no Convento de Nossas Palavras.
Saudade são todas as palavras que não digo ao repetir o mantra que não me torna santo, mas que me livra da mesquinhez humana: seu nome.

13.7.11

Sobre o que falávamos mesmo?

Passo-lhe a mão no pescoço e uma úmida respiração de pele me diz desejos e me estremece o corpo. Coloco-lhe a mão no rosto, aproximo-me um pouco mais, vejo a veia saltar-lhe logo abaixo do queixo em espasmos de uma fala cifrada, que a boca calada e o corpo imóvel tentam ainda esconder.
Um tênue calor sobe-me à garganta.
Sobre o que falávamos mesmo?", pergunta aos solavancos, com um fiapo de voz, enquanto suas pernas se esticam e se retraem sobre a cama.
Movo-me lentamente, meu peito se encosta em seu ombro, meus olhos nos olhos dela numa enxurrada de frases inquietas e mornas.
Um esticar de braço trás silêncio ao abajur e inunda o quarto com a cumplicidade da brisa de uma penumbra criada pela luz do banheiro.
Minha mão solta-se de seu rosto, desce-lhe pelo pescoço até atingir o fino tecido da camisola a lhe cobrir os seios: e lhe falo descompassadas frases no marulhar suave de dedos.
A colcha, encrespada aos pés da cama por ondas de meus pés afoitos, resigna-se a não mais cobrir nossos corpos. Esparramo no chão a alva maciez de um travesseiro e seu onipresente discurso de sono.
Ela agora tem a respiração mais acelerada, seus olhos buscam os meus não mais para fazerem perguntas, suas pupilas varrem minha face a lerem, com frenesi, as expressões de contentamento em meu rosto.
Sobre o que falávamos mesmo?
Nossa conversa paira sobre a cama, boia perdida na penumbra à espera de que lancemos um anzol que a resgate; à procura do cais onde aportam as conversas que os casais lançam às noites.
Não sei mais sobre o que falávamos. Não me incomoda num um pouco deixar esse assunto à deriva, chocando-se cego nas paredes do quarto.
Entrego-me a nossa conversa na penumbra: às frases que lhe digo em movimentos de braços e mãos, às frases que ela me diz em enlaçamento de pernas, às frases que nos dizemos no silenciar mútuo de lábios.

25.5.11

Houve um tempo

O choro de um bebê é latifúndio de som no início da noite. Sentado na calçada, encostado à parede da casa, o homem ouve o berreiro sem lhe prestar atenção. Cavuca os bolsos puídos e encontra duas notas de pequeno valor: tudo o que possui está nessas duas notas abertas em suja mão e espalmada.
Mas não eram três as notas que tinha?
Uma nota a mais representa a gritante diferença entre pagar por um banho e um prato de comida ou somente a comida.
Vasculha os bolsos com morna expectativa de os dedos mastigarem outra nota, mas nada - o banho terá de esperar mais um dia. Aperta o dinheiro, guardando-o de volta na calça, sem desolação, sem alegria.
O bebê ainda chora.
Houve um tempo em que um bebê chorava ao seu lado, em que uma mulher gastava dias lhe cobrando responsabilidade em gritos que lhe chegavam pastosos ao se desmancharem nos etílicos caminhos de sua mente.
Tudo isso tremelica em sua cabeça em bruxuleios de uma chama fraca e inconstante. A imagem de um passante qualquer é vento despretensioso a apagar o que poderia ser uma lembrança.
Sua mente agora é poço vazio, um pântano lodoso a digerir imagens sem as pensar, sem as sentir; um espaço árido onde todas as memórias letargem perenemente entorpecidas pelo álcool.
Levanta-se, empurrado pelo desejo de comer. Pega a sacola em que duas camisetas não prometem coisa alguma - apenas o acompanham para, em um momento, cobrir-lhe o corpo imundo.
Olha para a direita, para a esquerda, sabendo pouco importar a direção escolhida: terá mais uma vez de vencer a noite com seus enormes cães que se entredevoram.

7.4.11

Casa vazia

O estrado da cama e o colchão foram as últimas coisas a saírem.
Por cerca de três horas, foi uma confusão de pés a se moverem pela casa; de vozes a se entrechocarem e a se alimentarem num eco cada vez maior pelos cômodos cada vez mais vazios.
Ontem à noite, as paredes do quarto assistiram minha insônia por causa de uma tosse ritmada; e agora olham, nuas, o teto, que parece mais branco, espiam o chão, que parece mais amplo.
É tudo tão mais claro e largo numa casa vazia.
Vejo, nas paredes, cicatrizes que eu não percebia. Passo a mão na úmida frialdade de um bolor que, escondido, crescia num silêncio monástico. Mutilados espelhos de tomadas escancaram-me suas dores, sufocadas em secos gritos atrás de um móvel qualquer.
Amanhã ou depois, um homem virá, jogará tinta branca sobre todas as paredes e ninguém mais poderá me ver nelas.
Caminho lentamente pelos aposentos, e ainda assim o som dos meus passos é monólogo a martelar despedida pelo ambiente.
No banheiro, o chuveiro é corpo descarnado sem a promessa de água a lhe escorrer pelos poros. Nos quartos, as janelas cerradas murmuram a lamúria de uma penumbra. Nos tetos, as lâmpadas resignam-se, ao terem amordaçados os seus discursos de luz.
É tão sombria a claridade de uma casa nua.
Meus móveis, minhas roupas caminham agora pela cidade, chacoalhando apertados dentro de um caminhão. Numa cúmplice mudez de anos, levam a mim mesmo.
Daqui a pouco, vou povoar outras paredes - túmulos recém caiados de outras vozes.

4.3.11

Fico assim a vida toda?

A primeira vez que a viu, caminhava distraída quando sentiu a sensação de estar sendo observada. Levantou olhos e viu uma mulher em pé à uma janela, a cortina logo atrás. Tão logo a olhou, a mulher começou a balançar a mão num aceno de frenética alegria.
Procurou atrás de si a quem seria o cumprimento e não encontrou outra pessoa. Respondeu meio sem-graça, para não embaraçar a mulher, que não parava de se agitar, numa automática alegria de convulsão de braço.
Caminhou mais uns dez passos, parou e viu a mulher à janela repetir os gestos a outra pessoa que vinha pela calçada.
No outro dia tornou a passar pela rua e a mulher, com a cortina atrás de si, acenou-lhe novamente a enfática saudação de um reencontro. Tentou responder-lhe com alguma emoção, mandou-lhe um beijo, e recebeu apenas a mecânica sinfonia de nota única de um braço a girar no ar.
Evitou o caminho por dois dias. No terceiro estava decidida a dar à mulher um pouco mais do que tão somente um cumprimento.
Chegou-se próxima à janela, chamou-a, perguntou-lhe o nome. A mulher debruçou-se, encarando-a.
A cortina batia-lhe nas costas, na densa respiração de um vento fraco. A sala estava imersa na penumbra de uma falsa noite, envolta num frio silêncio que escapava à rua e se estilhaçava ao se chocar com os ruídos da cidade.
O olhar da mulher à janela desceu até os olhos da mulher na rua. Inundou-os com a superficialidade das pupilas que enxergam, mas não vêem. Assoprou-lhes a ventania calma das almas à deriva, sempre prontas a reconhecerem em qualquer olhar o porto fugaz onde lançarão frágeis âncoras. E não disse palavra alguma.
Depois de alguns segundos, a janela estava recomposta, com a mulher novamente em pé, à espera sempiterna dos acenos desconcertados a lhe responderem o oscilar de braço, que pendula pleno da delicada sanidade humana.

23.2.11

Ainda ontem, nasci

O farfalhar de umas fitas presas ao teto recorda-me o móbile que havia suspenso sobre o meu berço - ou seria sobre o berço do meu filho?
De qualquer modo, lembra-me infância, invade-me uns cheiros, uma sensação estranha e ao mesmo tempo confortadora. Chego a me esquecer de que estou num hospital, por momentos distraio-me da dor.
Fosse o móbile meu ou do meu filho, a certeza de distrair o bebê que fomos da solidão de um quarto em que as pontas dos pés são as visitas fugazes da mãe a se certificar estar tudo bem.
Como aqui, de tempos em tempos: o abrir suave da porta, o arrastar descuidado de sapatos brancos, as mãos frias a me apertarem o braço, a cutucarem a mangueira de soro. E eu vago pupilas em silêncio - um corpo mirrado e ressequido a esgazear fingimentos de recém-nascido.
Quem pendurou as fitas, por acaso sabia que elas nos contam histórias?
O dedilhar sem nexo dos tecidos soam frases completas, que se encaixam numa assustadora coerência de mecanismos de relógio a engendrar casos.
Quando meu filho chorava, meus pés eram tropeços de ansiedade para chegarem depressa ao quarto e resgatá-lo das grades baixas do berço. Não me lembro, mas minha mãe deve ter feito o mesmo por mim.
Aqui não chego a chorar, apesar de não me faltar vontade. Mas se choro, viria uma chuva de porquês - e a quem chora não se entrega um tempestuoso céu de perguntas, mas a chuva morna de abraços.
Às noites, o choro galga-me a garganta com mais impaciência. Sei que é porque as fitas estão caladas. Até tento ouvir algo, um sussurro sem sentido qualquer. Mas tenho por distração apenas o abrir da porta, a claridade do corredor atropelar-se, quarto a dentro, e as mão frias a me apertarem o braço.
Quando sair do hospital, vou pedir umas fitas no teto do meu quarto. E lá ao menos não vou precisar enganar o choro.
Se ele vier, solto-o baixinho, aos solavancos molhados de frases inocentes. E apuro ouvidos, esperando o pé ante pé da minha mãe a se certificar de que está tudo bem.

26.1.11

Torrente

Nada foi deixado para trás.
Deixa-se aquilo que, num relance de olhar, é visto e as mãos não se despertam na vontade de pegar. Um quadro enorme dos avós, uma maço de cartas amarrado com fita de cetim, uma coleção de CDs há muito guardando somente a latência da música, alguns livros mantido em posição de sentido, numa ordem unida silenciosa e onipresente.
Tudo foi ostensivamente abandonado.
Começou quando nuvens carregadas escureceram o dia com a cor da tempestade. O dia não se faz noite, cobre-se com negra colcha de nuvens, perfuma-se com o hálito cada vez mais úmido do vento, até se banhar na chuva que ele mesmo gestou.
E a chuva é muita: uma caudalosa sinfonia líquida regida pelos invisíveis dedos de um maestro incapaz de lhe determinar o fim.
Da janela, a mulher olha desatenta os pingos repetirem o mesmo discurso céu-terra, criando um hipnótico mantra, alimentado pelo som da água a escorrer incessantemente.
Até que um barulho mais forte a desperta, ela olha a ladeira acima de sua casa e vê uma massa de terra intrometer-se no discurso da chuva com um xingatório feito de lama, escombros de outras casas, troncos de árvores apavorados a rodar desconexos, tentando com os galhos agarrarem a salvação de uma encosta.
Uma palpitação instintiva toma conta da mulher. Ela abandona a janela aberta – desmesurada boca faminta, prestes a se empanturrar de terra -, desabala-se esquecida do que seja respiração, com as palavras mutiladas em soluços de aflição, sai correndo para a rua em atropelos de sandália, agarrada ao filho de três anos.
Não, nada foi deixado para trás.