Entro no quarto e a vejo sentada na poltrona de canto, um abajur aceso a cachoeirar luz sobre seus ombros. Com as pernas cruzadas, ela tem às mãos um livro, no qual passeia dedos pelas linhas e os olhos, com meticulosa atenção, colhem palavras no terreno das páginas.
Aproximo-me, ponho a mão em seus cabelos, beijo-lhe a testa. Ela levanta a cabeça, sorri enquanto alisa levemente minha coxa.
Sento-me na cama, tomo um livro sobre o criado-mudo, recosto-me na cabeceira, acendo meu abajur, começo a ler.
Nada falo, ela nada diz - e essa ausência semeia pelo ambiente fagulhas de silêncio, logo tornadas labareda pelo sopro discreto das páginas que viramos nos livros. Dentro em pouco, o quarto todo arde no frescor de um consentido silêncio duplamente cultivado.
O choro de um bebê irrompe pelas frestas, arranhando a fina superfície da tranquilidade do aposento em compungido pedido de atenção e cuidado. Atrás dele, avançam pelo caminho aberto a ansiedade descontrolada do som de uma televisão, a perene descompostura dos motores dos carros, o repetitivo lamento de um cão em fileira de latidos.
Desvio meus olhos das páginas, interrompo o discurso mudo do livro. Os olhos dela já buscavam os meus, o jorro de palavras de seu livro contido pelo dique de suas mãos a fechar-lhe o corpo.
Trocamos uma palavra, falada na mesma curvatura de lábios de um sorriso.
Ela descruza as pernas, deita o livro de lado, recosta-se na poltrona, escorregando as mãos pelos braços do assento numa languidez difusa pela sombra e luz do abajur.
Meu livro margeia minha perna e repousa num fluxo estancado de palavras das páginas abertas. Apago o abajur ao meu lado, estico a ela minhas mãos, que lhe falam uma torrente de frases plenas de pouca luz, menos livro, mais proximidade, lábios, pele...
Ela se levanta, e o silêncio volta a encher o quarto, inundando-o num mar cheio de ondas de lençóis.
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