23.2.11

Ainda ontem, nasci

O farfalhar de umas fitas presas ao teto recorda-me o móbile que havia suspenso sobre o meu berço - ou seria sobre o berço do meu filho?
De qualquer modo, lembra-me infância, invade-me uns cheiros, uma sensação estranha e ao mesmo tempo confortadora. Chego a me esquecer de que estou num hospital, por momentos distraio-me da dor.
Fosse o móbile meu ou do meu filho, a certeza de distrair o bebê que fomos da solidão de um quarto em que as pontas dos pés são as visitas fugazes da mãe a se certificar estar tudo bem.
Como aqui, de tempos em tempos: o abrir suave da porta, o arrastar descuidado de sapatos brancos, as mãos frias a me apertarem o braço, a cutucarem a mangueira de soro. E eu vago pupilas em silêncio - um corpo mirrado e ressequido a esgazear fingimentos de recém-nascido.
Quem pendurou as fitas, por acaso sabia que elas nos contam histórias?
O dedilhar sem nexo dos tecidos soam frases completas, que se encaixam numa assustadora coerência de mecanismos de relógio a engendrar casos.
Quando meu filho chorava, meus pés eram tropeços de ansiedade para chegarem depressa ao quarto e resgatá-lo das grades baixas do berço. Não me lembro, mas minha mãe deve ter feito o mesmo por mim.
Aqui não chego a chorar, apesar de não me faltar vontade. Mas se choro, viria uma chuva de porquês - e a quem chora não se entrega um tempestuoso céu de perguntas, mas a chuva morna de abraços.
Às noites, o choro galga-me a garganta com mais impaciência. Sei que é porque as fitas estão caladas. Até tento ouvir algo, um sussurro sem sentido qualquer. Mas tenho por distração apenas o abrir da porta, a claridade do corredor atropelar-se, quarto a dentro, e as mão frias a me apertarem o braço.
Quando sair do hospital, vou pedir umas fitas no teto do meu quarto. E lá ao menos não vou precisar enganar o choro.
Se ele vier, solto-o baixinho, aos solavancos molhados de frases inocentes. E apuro ouvidos, esperando o pé ante pé da minha mãe a se certificar de que está tudo bem.