O que eu tenho é que arrumar algo para fazer, distrair a cabeça, diz o homem a si mesmo enquanto olha as próprias mãos unidas, trançadas em aperto de víbora. O corpo estremece sob a pulsação de mil corações repletos de sangue, um sangue quente, encarnado, a atropelar-se nas veias, a criar essa raiva a lhe secar a boca.
E os olhos vidrados nas mãos enlaçadas, envoltos na artificial placidez da invisível neblina do antidepressivo.
"distrair a cabeça..."
Levanta-se, vai até a cozinha, bebe um copo de água, a boca ainda seca, o fogo de mil sóis movendo os mil corações e essa raiva.
Chega-se à janela da sala, olha a cidade lá embaixo: prédios, casas, gente, tudo calmo, tudo tão injustamente envolto em serenidade.
Onde o motivo de tanta raiva? Afinal, a vida tão tranquila: filhos criados, aposentadoria confortável, a cálida luz da companhia de uma mulher tolerante.
E ainda assim a ansiedade, esse inseto com mil asas de fogo a esvoaçar às cegas por suas entranhas.
"arrumar algo pra fazer..."
O corpo estático, as mãos mais uma vez atadas e os olhos fixos nos dedos com as falanges brancas. Mas o olhar está voltado para dentro do homem, encarando os mil sóis que ardem, sentindo o pulsar dos mil corações, tentando seguir o voo das mil asas desse inseto errante.
Escolhesse o homem o coração certo, deixasse a luz de um único sol, entre tantos, iluminar-lhe os batimentos, veria.
Veria a larva gerada no rancor frio de muitos anos, na angústia banhada em um lago de aparente resignação: uma superfície calma a esconder...
Escolhesse o homem o coração certo, acompanharia o desenvolver dessa larva, cuidaria de seu crescimento, esperaria que ela criasse mil asas de palavras a lhe escapar em voo pleno pela boca.