15.1.09

Sobre o corpo

O céu a me cobrir é uma marquise descascada de onde, de quando em quando, despencam lascas de látex à guisa de gotas aladas. Meu sol é uma lâmpada sem a casca de um lustre – os meus dias são às noites. As nuvens são os buracos na pintura – um dia, uma tempestade de tinta as varrerá do meu céu. Estrelas, eu não as tenho. Sou um mundo de corpo único, pedaço de concreto estirado entre duas paredes, ponte sem abismo entre a porta de um edifício e a vastidão de outras calçadas.
Sobre meu rígido corpo, todas as manhãs, escorrem tímidos rios de água, pastoreados desordenadamente pela vassoura cega de uma velha. O líquido tenta me penetrar, agarra-se às mínimas reentrâncias de minha pele feita de cimento e pedra. Mas a velha é pastora obstinada a não perder seu rebanho ao manusear seu cajado – e o calor do dia carrega os desgarrados em seus braços etéreos.
Sobre meu tenaz corpo, forjado à secular têmpera de cimento e areia e pedra, passos distraídos embaralham em mim pegadas que não guardarei, e das quais terei apenas a lembrança em pó.
Os anos têm me trazido poucas e espaçadas rugas, nas cicatrizes desalinhadas das rachaduras.
Em meu compacto corpo, nenhum outro consegue subjugar-me a aspereza decidida: atritam-se, pesam, esfolam-se sobre mim e se tornam tão somente um passado branco e silencioso.
Sobre meu duro corpo lunar de minúsculas crateras, passeiam formigas, baratas, moscas em um falso balé musicado pela necessidade de sobrevivência.
Sobre meu perene corpo de concreto, todas as noites, repousa a carne mole e alcoolizada de um humano corpo.