Um dia todo o desejo de um barco é fartar-se de água.
Os Homens não nos cansamos da terra que nos sustenta. Para a grande maioria de nós, o ser humano caminharia passos sem fim por estradas e campos e atalhos; anoiteceria sem pavor à escuridão se soubesse ser inexorável a manhã seguinte; viveria em felicidade sabendo-se livre da frialdade escura do solo a lhe comprimir e consumir o corpo inerte.
E todos os dias a terra farta-se de Homens.
Os barcos escoam passos no líquido corpo em que flutuam; envelhecem, com fugazes rugas, as faces perenemente jovens de todas as águas; desejam a espuma de todos os mares, as margens de todos os rios; entregam sem receio suas carnes ao castigo do Sol, aos arranhões do Vento – sempre há o constante e molhado embalo a lhes trazer alívio.
Um dia todo o desejo de um barco é fartar-se de água.
Então escolhe o Vento da pior tempestade ou a maior vaga, nascida de fúria e susto, ou uma pedra, esquecida aos humanos olhos: e se entrega.
Afunda-se: mastros e proa e popa e bordos e leme e quilha e velas em um longo e terno abraço, repousando cansaço no leito lodoso de um rio ou no escuro e silencioso azul de um mar.
Guardando em si todos os caminhos que navegou, o barco agora anoitece alimentado pela certeza da manhã que lhe trará novas noites.
E não deseja epitáfio a marcar seu local de repouso – quer apenas consumir-se liquidamente em paz.