3.10.06

Canto de cigarra

O entardecer pinta de lilás as esparsas nuvens que bóiam no céu. O sol arrasta lentidão e recolhe o calor de sobre a terra. O vento voa vôos tímidos, sem vivacidade, cansado de ter soprado tantas folhas e folhagens, tantos troncos e caules, tantos lagos e rios sem conseguir a nada refrescar.
Presa a uma árvore, uma cigarra macho alimenta-se silenciosamente. O frescor que chega com o final do dia traz-lhe maior conforto, fazendo com que o instinto recomece a soprar-lhe a necessidade do acasalamento.
Dentro de casa, o homem olha, sem interesse, a noite escoar vagarosamente sobre o mundo e pensa somente que a qualquer momento a mulher chegará.
Após tantos anos sob a terra, esperando o momento de amadurecer, de aflorar à superfície, de galgar troncos, alimentar-se de seiva e cantar a imperiosa necessidade de se acasalar, o inseto resta imóvel.
Quase plenamente instalada do lado de fora da casa, a escuridão passeia olhos pela alma do homem, inquietando-o com a demora da mulher, maldosamente insinuando-lhe que a noite será de solidão e que o desejo deverá ser recolhido. Então ele movimenta-se impaciente pela casa.
A cigarra não argumenta com a Natureza: solta seu estribilho, inunda o ar com o som de seu canto, espalha seu chamado pela fêmea, agita-se ante o pouco tempo de vida que lhe resta e, sem se mover, canta e canta e canta...
A mulher chega, o homem só lhe diz abraços e mãos espalmadas em suas costas, em seu rosto; e lhe diz beijos, calando-lhe os lábios que explicavam; e passeando a língua pela boca que lhe é cada vez mais oferecida, o homem diz desejos à mulher.
A cigarra arrefece o canto, bate asas e mergulha no escuro em frenético vôo sem rumo.
Choca-se contra a janela do quarto da casa, onde o homem mansamente comunga amor.